Apesar de não parecer iminente, desastre se desenha como algo perturbadoramente possível.
Para um guerreiro em uma operação de sítio no século 16, a arte da escalada significava galgar altos muros fortificados de cidades evitando ser atingido por coisas desagradavelmente incandescentes ou afiadas. Para os homens que reescreveram as regras da estratégia segundo a era nuclear, a arte da escalada é o processo por meio do qual, pouco a pouco, uma guerra limitada se torna uma guerra ilimitada. Como nos cercos ancestrais, atualmente uma escada é crucial: mas uma escada conceitual, na qual cada degrau tanto eleva o nível do conflito quanto envia um sinal para o outro lado.
Herman Kahn, uma das várias inspirações para o personagem principal do inigualável tratado de Stanley Kubrick sobre dissuasão nuclear, Dr. Fantástico, concebeu uma escada de 44 degraus de escalada para estudar e analisar o fenômeno. O movimento do 9.º degrau (“Confrontos militares dramáticos”) para o 10.º (“Rompimentos provocativos de relações diplomáticas”), notou ele, é o passo no qual a guerra nuclear deixa de ser algo impensável.
Dr. Fantástico é uma comédia porque Kubrick considerou impossível colocar na tela de outra forma os absurdos desta conta escatológica e sua perturbadora teorização. Isso não significa que os conceitos da sistematização pela escada não tenham significado. A invasão da Ucrânia (12.º degrau: “grande guerra convencional”) sem dúvida elevou o mundo para além do nível em que a guerra nuclear deixa de ser algo impensável; nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, tais horrores “retornaram para o campo da possibilidade”. Os riscos de um conflito escalar para uma guerra nuclear são maiores hoje do que foram por mais de meio século.
Somente um dos lados na guerra possui armas nucleares. Apesar de a Ucrânia ter tido armamento atômico soviético estacionado em seu território até poucos anos depois de se tornar independente, em 1991, essas armas jamais estiveram sob seu controle político. E o país, ao contrário do que prega a propaganda russa, não empreende nenhum tipo de esforço para adquirir armas atômicas. Mas um adversário sem armas nucleares não garante contenção nuclear. E à Otan, que fornece armamento para a Ucrânia e reforça posições na região, não faltam ogivas atômicas.
O presidente russo, Vladimir Putin, não deixou de alertar seus adversários a respeito dos riscos nucleares. Em um discurso na TV, no início da invasão russa, ele alertou as potências ocidentais que poderiam vir a tentar conter seu avanço a respeito de “consequências com as quais vocês jamais se depararam em sua história”. Em 27 de fevereiro, após a imposição de sanções bancárias sem precedentes pelos países do Ocidente (20.º degrau: “embargo ou bloqueio mundial”), Putin deu ordem para que as “forças de dissuasão” de seu país passassem para um “modo especial de prontidão de combate”.
O cenário nuclear mais simples prevê Putin, caso se veja diante de uma derrota na Ucrânia, tentando mudar a maré explodindo uma bomba nuclear (18.º degrau: “exibição ou demonstração de força espetacular”).
Christopher Chivvis, que serviu como chefe de inteligência dos EUA para a Europa entre 2018 e 2021, afirmou que, em vários jogos de guerra simulados após a anexação russa da Crimeia, em 2014, especialistas ocidentais e oficiais militares que faziam o papel dos russos escolheram certas vezes conduzir testes nucleares ou uma detonação de alta altitude que prejudica comunicações em uma ampla região – “Imagine uma explosão que faz apagar as luzes de Oslo”.
Um desdobramento disso poderia ser a Rússia usar um armamento nuclear menor na Ucrânia, justificando a ação enquanto um ataque preventivo contra armas de destruição em massa ucranianas não existentes ou alegando que foi a Ucrânia que explodiu a bomba. Isso seria seguido por uma exigência de rendição incondicional apoiada por ameaças de mais explosões similares.
Uma pequena explosão nuclear pode parecer uma contradição em termos. Mas tanto a Rússia quanto a Otan possuem armas nucleares “não estratégicas” ou “táticas”, que causam muito menos danos do que as bombas arrasadoras, capazes de destruir cidades inteiras. Essas bombas nucleares estratégicas têm potência aferida normalmente na casa das centenas de quilotons: suas detonações equivalem a explodir no mesmo momento milhares de toneladas de fortes explosivos.
A potência das armas nucleares táticas equivale a poucos quilotons. O poder da bomba B61, um armamento americano com potência variável, pode ser “diminuído” para até 0,3 quiloton, caso o objetivo for utilizá-la como arma tática. A explosão de alguns milhares de toneladas de nitrato de amônio mal armazenado em Beirute, em agosto de 2020, mostrou quão terríveis essas explosões podem ser. Mas elas são muito menos devastadoras do que as bombas usadas em guerras totais.
Acredita-se que a Rússia possua milhares de armas nucleares não estratégicas; o país as considera um modo de compensar a força da Otan em avançados armamentos convencionais. A Otan mantém entre 100 e 200 bombas B61, apesar de as Forças Armadas americanas considerarem que esse armamento tem pouco valor no campo de batalha. A presença dessas bombas é mantida para dar aos aliados europeus relevância direta sob o guarda-chuva nuclear dos EUA.
A disponibilidade dessas bombas é parte do que torna assustadora a segunda rota, que é indireta, para o uso de armas nucleares. Esse caminho implica em Putin ampliar a guerra para um conflito em que as forças da Otan se envolvam diretamente, de uma maneira que a aliança tem resistido até aqui – e uma importante razão para isso é o risco nuclear inerente a esse confronto.
Um temor é que a Rússia possa atacar diretamente armazéns ou carregamentos de armas em território de países-membros da Otan. Se o país atacado conclamar seus aliados a tratar a agressão como gatilho do Artigo 5.º, a cláusula de proteção mútua, a Otan poderá decidir responder contra as forças russas na Ucrânia – ou mesmo dentro da Rússia.
Pior medo
Outra possibilidade é que os países ocidentais possam agir fomentando pressão interna para acabar com o derramamento de sangue, especialmente se a guerra na Ucrânia escalar, por exemplo, com o uso de armas químicas. A Rússia poderia usar suas alegações de que a Ucrânia possui esse tipo de armamento para justificar uma retaliação. Tais táticas espalhariam terror entre os civis ucranianos e sinalizariam para a Otan que a Rússia pretende ir até o fim.
Ao mesmo tempo, isso colocaria uma “imensa pressão sobre a Otan para obrigar a Rússia por meio da força a parar com esses ataques”, afirmou Oliver Meier, do Instituto para Pesquisas de Paz e Política de Segurança, em Hamburgo.
Meier vê uma “escalada descontrolada como resultado de atropelos, operações de bandeira falsa ou sinalizações mal interpretadas” – as rotas mais prováveis para o desastre. Atropelos, afinal, acontecem, e pessoas em guerra tendem a ficar nervosas. Em 9 de março, como se provesse um exemplo prático, um erro durante manutenções de rotina fez um míssil indiano com capacidade nuclear (mas neste caso não carregado) ser disparado contra o Paquistão, vizinho da Índia que também possui armas atômicas. Se as tensões estivessem elevadas entre os países, o encabulado pedido de desculpas dos indianos teria chegado tarde demais.
Qualquer que seja a cadeia de eventos que ocasione isso, uma irradiação até mesmo de uma pequena lasca da Ucrânia chocaria o mundo. Governos ocidentais seriam pressionados a reagir. Mas responder à Rússia na mesma moeda (27.º degrau: “ataque exemplar contra militares”) equivaleria a abrir caminho para um ataque contra cidades americanas e europeias (29.º degrau: “ataque exemplar contra civis”).
Khan definiu outros 15 degraus em que adversários trocam ataques e arrasam cidades com ainda mais descuido. A doutrina da aniquilação mútua garantida sugere que, uma vez que cidades estão sendo destruídas, as coisas escalam rapidamente para o 44.º degrau: “espasmo ou guerra insensata”.
Mas a alternativa de tentar derrotar Putin usando apenas armas convencionais não o faria necessariamente atender a um similar, especialmente se a tentativa de colocá-lo para correr parecer próxima do sucesso em torno daqueles degraus iniciais. Mas não fazer nada pode muito bem se provar impossível; a necessidade de demonstrar que armas nucleares não permitem impunidade poderia se provar inevitável.
Jogos de guerra
Uma série de jogos de guerra realizados durante o governo de Barack Obama sugeriu uma gama de respostas possíveis. Em The Bomb: Presidents, Generals, and the Secret History of Nuclear War, o jornalista Fred Kaplan descreve a reação dos jogadores de guerra a um cenário no qual a Rússia invade um país báltico e dispara uma arma nuclear tática contra uma base alemã para impedir o contra-ataque da Otan.
Quando um grupo de generais simulou esse cenário, Colin Kahl, conselheiro de segurança nacional do então vice-presidente Joe Biden, argumentou que seria melhor continuar lutando com armas convencionais e isolar a Rússia diplomaticamente. Seu conselho foi seguido no jogo. Quando secretários de gabinete e comandantes militares fizeram a mesma simulação um mês depois, eles decidiram jogar uma bomba nuclear em Belarus, mesmo que o país não tivesse envolvimento na guerra.
Nisso tudo, é importante distinguir risco relativo de risco absoluto. Os riscos de uma escalada no confronto que leve ao uso de armas nucleares na Europa estão mais altos agora do que estiveram desde 1962. Isso não significa que esse desdobramento é provável. Para Putin, escalar a guerra de maneira que a Otan entre no conflito representaria uma abertura para uma derrota definitiva na Ucrânia; planejar impedir sua derrota com recursos nucleares seria arriscar uma retaliação em massa.
Mas os riscos são maiores – talvez até mesmo existenciais – para Putin do que para seus oponentes ocidentais. “Um confronto direto entre a Otan e a Rússia será a 3.ª Guerra Mundial”, alertou o presidente americano, Joe Biden, no dia 11. Isso faz dessa possibilidade “algo que temos de nos esforçar para evitar”. Putin pode considerar que há recompensas a serem conquistadas parecendo menos comprometido com essa prevenção.
Dissuasão
Thomas Schelling, economista e estrategista nuclear, observou certa vez que ameaças para dissuasão eram “questão de determinação, impetuosidade e obstinação clara”. Não é fácil fingir essas qualidades, notou ele: “Não é fácil mudarmos nosso caráter. E tornar-se fanático ou impetuoso seria um alto preço a pagar para tornar nossas ameaças convincentes”.
Um homem que invade a Ucrânia sem avisar a maioria de seus ministros e comandantes militares que está prestes a fazê-lo já estabeleceu esse personagem.
Para algumas autoridades ocidentais, essa assimetria de caráter e recompensa sublinha a necessidade de um rápido acordo, mesmo que isso favoreça o Kremlin. Outros notam que simplesmente dizer essas coisas dá a Putin uma vantagem de pressionar firme até que seja repelido com firmeza. “Putin valeu-se implacavelmente do medo da Otan de uma guerra nuclear como (o fim de linha) inevitável”, lamenta John Raine, ex-diplomata britânico. “Ele usou isso para criar um espaço muito amplo, no qual poder travar uma guerra convencional na Europa sem uma resposta militar da Otan.” O perigo é que Putin tente ampliar esse espaço ainda mais – ou se equivoque sobre esses limites.
The Economist / O Estado de São Paulo