Por: Pedro Couto
O instituto do habeas corpus, que integra o elenco do direito universal e representa uma defesa da liberdade e da democracia contra o arbítrio do poder, no Brasil está necessitando uma lei complementar que defina melhor e mais claramente seu uso. Isso porque ele se transformou - exemplos comprovam - numa forma nem muito velada de tentar garantir a imunidade ou a impunidade para aqueles que cometem os mais variados crimes.
Não pode ser usado a torto e a direito, como vem acontecendo. Tampouco extrapolar os limites da razão lógica que o criou no mundo e, entre nós, o colocou no texto constitucional. De acordo com o item 68 do artigo 5º da Carta de 88, "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade por ilegalidade ou abuso de poder". O artigo 102 trata da competência do Supremo Tribunal Federal. É indispensável, no plano da lei, colocar-se em prática o que Santiago Dantas chamava de visão extralegal, já que legislação alguma pode prever e definir antecipadamente todos os casos nos quais os seres humanos se envolvem ou são envolvidos.
O item 68 do artigo 5º prevê uma norma básica, estrutural, não específica. Nem poderia ser o contrário. Mas em nosso País, o habeas corpus passou a ser utilizado para assegurar a liberdade até de condenados, desde que possuam perspectiva de algum recurso. Esta interpretação livrou da prisão o jornalista Pimenta Neves, um assassino, o fiscal de rendas Rodrigo Silveirinha, o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes, o ex-banqueiro Salvatore Cacciola, e agora o banqueiro Daniel Dantas, um personagem de ousadia fantástica que atravessou do século 20 para o século 21 voando sempre num trapézio de altíssimo risco no mercado financeiro. Inclusive, com o apoio do senador Antônio Carlos Magalhães, quase foi ministro da Fazenda do governo Collor. Incrível.
Antes do juiz Fausto de Sanctis estabelecer sua nova prisão, poucas horas depois do despacho do presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, Daniel Dantas havia deixado a prisão.
Não sofreu violência ou ameaça. Ou coação. Nada disso. Foi preso em conseqüência de uma determinação judicial com base em extensa e demorada investigação da Polícia Federal. Quando o pedido de habeas corpus chegou ao Supremo, Gilmar Mendes, segundo publicou "O Globo" na edição de 10 de julho, liberou o acusado às 23 horas e 30 minutos da véspera. A matéria foi assinada por Carolina Brígido e Ricardo Galhardo.
O despacho, que ocupou dezoito laudas, foi exarado com rapidez. Pena que não haja rapidez na Justiça para solucionar questões que se arrastam por anos a fio. Caso das ações de aposentados e pensionistas contra o INSS. Caso dos precatórios, por exemplo. Mas estas são outras questões. Com base na lei em vigor, o habeas corpus é medida de extrema urgência e o ministro Gilmar Mendes era - claro - competente para expedir a ordem de soltura. Exatamente por casos assim é que, a meu ver, é necessária uma lei complementar que regule melhor a concessão de habeas corpus.
Em primeiro lugar, a questão de possibilidade de recurso, figura jurídica que norteou o ministro Marco Aurélio Melo a conceder habeas corpus a Cacciola, Pimenta Neves e Rodrigo Silveirinha. Mas se a possibilidade de recurso - não sua aceitação - fosse suficiente para libertar condenados e acusados, os 430 mil que cumprem pena no sistema penitenciário do País deveriam também ser soltos até que o Supremo ou o STJ negassem seus recursos a pretexto de alguma coisa. Eles podem recorrer, através de seus advogados.
Serem atendidos é outra coisa. Mas esta condicionante não foi considerada por Marco Aurélio Melo nem por Gilmar Mendes. Não coloco em dúvida a integridade e a capacidade jurídica dos dois magistrados. Acho, apenas, que a lei na qual se baseiam deveria ser mais clara, mais substantiva e menos flexível no seu uso adjetivo.
Aceitar a perspectativa de recurso, que sempre haverá, para liberar prisioneiros, é algo que não se verifica em países como os Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, para ficar somente nestes. As pessoas condenadas cumprem as penas. Se obtiverem êxito em algum de seus recursos, então sim são libertadas. No Direito Penal brasileiro, até a interpretação de hoje, não existia isso. Os condenados cumpriam as penas impostas, delas descontando o período em que se encontraram presos preventivamente.
Exemplo típico, o do tenente Alberto Bandeira. Preso em 52 pelo caso Sacopã, foi condenado em 54 pelo Tribunal do Júri. Solto condicionalmente em 59, os dois anos que separaram a prisão preventiva da condenação foram deduzidos do tempo da pena. É mais lógico. E direito é uma questão de lógica. Caso contrário, a cada condenação coloca-se um recurso. A liberdade provisória, assim, torna-se definitiva. O caso Daniel Dantas sequer envolve a figura da prisão preventiva.
E sim temporária. Curto período para elucidação dos fatos. Não se vê violência contra o acusado. Vê-se uma reação normal da Polícia Federal e da Justiça de primeira instância em face de uma onda enorme de acusações. Uma nova lei complementar precisa definir melhor o habeas corpus.
Fonte: Tribuna da Imprensa
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