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quarta-feira, agosto 03, 2022

Dobrando o cabo das tormentas: a dupla via da redescoberta do Brasil




Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Gilberto Gil e Chico Buarque de Holanda 

Por Paulo Fábio Dantas Neto* (foto)

No espaço de tempo equivalente ao de uma quaresma, entre os meses de junho e julho desse 2022 inesquecível, a mobilização da sociedade civil brasileira em defesa da democracia mudou de patamar. À delicada e por vezes enervante esgrima das instituições contra o perigo que as ronda desde a eleição de Jair Bolsonaro, somou-se, há meses, o intrincado xadrez pré-eleitoral, necessário, mas não bastante. Agora a cidadania desce da arquibancada e dá início a um jogo coletivo para garantir sua ida às urnas.

Convém destacar o ponto a partir do qual a fermentação de uma indignação contida começa a adquirir contornos de um basta. Na bacia do Amazonas, na internacionalmente simbólica data de 5 de junho, Dia do Meio ambiente; e em Foz do Iguaçu, no dia 9 de julho, assassinatos políticos (no sentido socialmente mais relevante que pode ter esse adjetivo) provocaram, simultaneamente, um coro de protestos na sociedade política e um ato público cívico e interreligioso na Catedral da Sé da capital de São Paulo, estado que tivera seu feriado constitucionalista histórico impactado pelo segundo crime.

No ato da Sé predominou a atitude de resistência e de defesa de direitos humanos, não faltando, desse modo, analogias com o momento histórico de lutas democráticas que estão a completar cinquenta anos. Compreensível, pois vinha sendo farejado, cada vez mais vividamente, pela nossa memória comum, nesses quase quatro anos de tensão e agressão, o monstro autocrático que parecia pronto a perpetrar seu mister de inverter a roda do tempo para mergulhar o país numa tragédia da qual a unidade cívica e política contra a ditadura e pela democracia o libertara há quatro décadas. Duas semanas após aaquele ato, a sociedade civil continua evocando seu bom combate do passado, mas eis que o monstro de chumbo atualíssimo emerge inteiro, escancarando o veneno de seus planos para embaixadores de todo o mundo dois dias após o ato da Sé e provoca descida mais efetiva da arquibancada ao campo aberto da participação cívica. Agora protestam contra o espetáculo grotesco não apenas a galera da geral e a parte da plateia comprometida com os sem-ingresso de sempre. As vaias partem até de cadeiras cativas.

O limite ultrapassado pelo presidente, no seu insólito 18 de julho, não foi só o da Carta de 88, que ele já transgrediu há tempos. Foi o limite do descompromisso, perante o mundo, para com a noção de comunidade política nacional. Por razões de uma política interna contra as eleições, comprometeu valores e interesses diversos, inclusive de aliados seus que não podem prosperar sem imagem externa.

Essa falta de senso de limites reverbera o que de mais atual, do ponto de vista político, foi dito no interior da catedral da Sé. Palavras de D. Pedro Stringhini, registradas nesta coluna há duas semanas – afirmando que a sociedade civil que proclamou, em 1975, que “a ditadura ia acabar e que a democracia ia chegar”, voltava a se reunir ali para dizer que “a democracia não vai embora” – além de mostrarem boa compreensão da diferença entre os dois contextos, estão a demonstrar lucidez premonitória. A resistência humanista e cívica traduz-se agora em iniciativa política. Em duas semanas percorreu-se caminho equivalente ao que, há quase meio século, levou dois anos - de 1975 a 1977 -, do repúdio ao assassinato de Herzog à carta do “basta” político no Largo de São Francisco. O acelerador chama-se democracia e o fato de dispormos hoje desse tesouro sustenta que não precisaremos de mais oito anos, só de mais três meses, para mandarmos o monstro embora e afastarmos de nós seus cálices de sangue.

O clamor das cadeiras cativas tem relevância prática. É natural que vire foco quando o jornalismo político cobre a iniciativa da Fiesp – que deve ser celebrada, ainda que tenha tardado – ou mesmo o bem mais amplo manifesto puxado pela liderança da Faculdade de Direito da USP. O alcance político desse último, no entanto, vem sendo subavaliado como se fosse mais um movimento de deslocamento de forças de dentro para fora. Tanto quanto o clamor empresarial, o da comunidade jurídica tem realmente o condão de cindir também o bloco da situação, mas, além disso, ela fala como um dos alvos principais do monstro autocrático, o que permite sintonia maior com a percepção e os sentimentos da maioria.  Essa sua capacidade objetiva de, falando em uníssono, ir além da lógica do puro interesse corporativo pode ser matéria controversa, do ponto de vista factual, porém, é parte da tradição política brasileira, sendo assim percebida pelo grande público, para desgraça de Bolsonaro. Por isso, a carta a ser lida no dia 11 de agosto tem a possibilidade palpável de ostentar mais de um milhão de assinaturas, ou quase isso. Esse fato faz com que a sua leitura pública seja muito mais que uma manifestação de repúdio como foi o importante ato da Catedral da Sé. Valerá nem tanto como ponto de chegada de uma indignação que vira um basta. Será isso também, mas pode ser mais que isso, um ponto de partida para uma articulação mais firme da sociedade civil com a sociedade política, em defesa das eleições e da democracia.

Essa sinalização talvez seja a mais importante dentre as muitas que se apresentam hoje às campanhas eleitorais do campo democrático. É hora de todas compreenderem que a tão falada frente democrática não foi construída no âmbito de nenhuma delas. Mesmo a eleitoralmente mais forte das candidaturas democráticas está distante de produzir essa sinergia e não se pode parar para procurar culpados por isso, até porque é possível que eles não existam e que cada ator político, não obstante prováveis erros de estratégia ou de conduta, deva ser encarado e avaliado, basicamente, por si e por suas circunstâncias.  

É do interesse da democracia que partidos e candidaturas do campo democrático enxerguem o leito por onde essa frente está de fato se constituindo. Isso não significa subordinar campanhas a esse eixo unitário, sequer fazer dele o foco prioritário das suas energias políticas. Sustentar o debate eleitoral é também vital à democracia. Mas já existe um solo adubado para o combate ao adversário comum, solo que não cabe tentar capturar – pois seria vão – ou oferecer alternativa, pois seria estreitá-lo.

O caminho de buscar resolver todo o problema no campo da pequena política pode até produzir fruto eleitoral, mas tem se revelado tormentoso e seguir por ele tornou-se perigoso a médio prazo. Para que a esgrima delicada e o bom xadrez possam ser praticados o cabo das tormentas precisa ser ultrapassado. O monstro está cada vez mais nu e contra ele precisa haver mobilização cívica e campanha eleitoral. A causa é comum a ambas, mas não é bom as confundir. A solidariedade cívica pode ser buscada e obtida, sem prévio compromisso eleitoral especifico. O resgaste do Brasil é a redescoberta de uma de suas melhores tradições, a de votar na política como via de formação sustentada de amplos consensos. Essa redescoberta só pode se dar, hoje, através dessa avenida de dupla via, a pista cívica e a eleitoral, articuladas e autônomas, não porque isso está escrito em manuais, mas porque está na cara.  

*Cientista político e professor da UFBa

Ciro Nogueira nega informações sobre compra de caminhão de lixo de amiga




O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), se recusou a responder a um requerimento de informações da Câmara dos Deputados sobre o uso de uma emenda parlamentar dele, liberada quando era senador, para a compra de um caminhão de lixo da empresa de uma amiga que frequentava seu gabinete. O requerimento foi aprovado pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) da Câmara em junho deste ano, após a revelação do caso pelo Estadão como parte da série de reportagens "Farra do caminhão de lixo", sobre a compra superfaturada de veículos do tipo.

A emenda parlamentar de Ciro Nogueira foi destinada à prefeitura de Brasileira (PI), cidade de 8.364 habitantes a 170 quilômetros de Teresina. Da proposição da emenda até a compra do caminhão compactador de lixo, todas as etapas passaram pelas mãos de aliados de Nogueira: a prefeita é do mesmo partido do ministro, o Progressistas, e aliada dele; o órgão federal que fez a licitação é comandado por um indicado de Nogueira; e a empresa que vendeu o caminhão tem entre os sócios a empresária Carla Morgana Denardin, amiga do ministro e da família dele.

Na série de reportagens, o Estadão mostrou a explosão na compra de caminhões de lixo por parte do governo, inclusive com verbas do chamado orçamento secreto, utilizando as emendas de relator. De 2019 para 2020, o número de caminhões licitados aumentou em mais de 500% - os editais com indícios de superfaturamento somam R$ 109,3 milhões. Em um dos casos, o mesmo modelo de caminhão viu seu valor aumentar em R$ 114 mil em licitação feita apenas um mês mais tarde. Para justificar as aquisições, algumas prefeituras inflaram os números de produção de resíduos sólidos.

Em resposta ao requerimento da Comissão, Nogueira encaminhou um parecer formulado pela Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ) da Secretaria-Geral da Presidência segundo o qual ele não precisaria dar explicações sobre o tema. O argumento é o de que a emenda parlamentar foi feita quando ele era senador, antes de assumir o cargo de ministro da Casa Civil, e não tem relação com suas atribuições enquanto ministro.

"De fato, os ministros de Estado, por integrarem o Poder Executivo, estão sujeitos à fiscalização e ao controle do parlamento. Note-se, contudo, que as informações que devam prestar são aquelas ínsitas (relacionadas) às suas atribuições, ou seja, que integram o âmbito de suas competências", argumenta o parecer da Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ). "É certo que esta atribuição (direcionar emenda parlamentar) não se insere dentro das competências assinaladas por lei à Casa Civil da Presidência da República (...), razão pela qual não será possível atender à solicitação do parlamentar", diz o texto.

Para o advogado Mauro Menezes, mestre em Direito Público e ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, o argumento da SAJ é uma "saída retórica" para evitar responder ao questionamento. "Penso que não houve defeito no requerimento. Se o texto pedisse esclarecimentos sobre a proposição da emenda, vá lá. Mas o que se pretende são informações sobre atos dele enquanto ministro", afirma.

"O Congresso está correto em pedir informações. A dúvida não é sobre se Ciro Nogueira pode ou não direcionar emendas para este ou aquele município. O que se discute é se ele, como ministro, praticou atos com interesses políticos ou pessoais privados para beneficiar a empresária de suas relações", diz Menezes. "Quer dizer que ele necessariamente cometeu algum ato ilícito? Não. Mas ele tem de prestar esclarecimentos."

O autor do requerimento é o deputado Leo de Brito (PT-AC). Segundo ele, durante a votação na comissão, o requerimento enfrentou resistência por parte da tropa de choque do governo - uma situação que não é usual, pois os pedidos de informação geralmente são aprovados sem contestação.

"Eles tentaram na verdade fazer um desvio retórico, dizendo que se trata apenas da questão da emenda. Agora, de qualquer maneira, pelo que foi levantado nas reportagens, temos uma situação muito delicada em relação a essa empresa", afirma o congressista. "Vamos fazer agora novos requerimentos para obter informações sobre a atuação desta empresa junto ao governo federal", diz Leo de Brito, referindo-se ao Grupo Mônaco, de Carla Morgana Denardin.

Estadão / Dinheiro Rural

Bolsonaro acusa Moraes de tentar incriminá-lo após nova manifestação da PGR




Mais uma vez na contramão do que pede sua equipe de campanha, o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou a atacar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira, 02, e acusou Alexandre de Moraes de "fazer tudo" para incriminá-lo.

Moraes, que toma posse na presidência no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no próximo dia 16 e conduzirá as eleições brasileiras, assim como a própria corte, têm tido a lisura atacada repetidamente por Bolsonaro sem provas. "Inquéritos do Alexandre de Moraes são completamente ilegais, imorais. É uma perseguição implacável por parte dele, a gente sabe o lado dele", afirmou o presidente em entrevista à Rádio Guaíba, de Porto Alegre. "É maneira de jogar a rede e me incriminar em algum lugar. [Moraes] Está fazendo tudo de errado e, no meu entender, não vai ter sucesso em seu intento final", acrescentou.

Bolsonaro citou o pedido da vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo, que analisou demanda da Advocacia Geral da União e reforçou o pedido da AGU para arquivar a investigação aberta contra Bolsonaro por suposta violação de sigilo de inquérito da Polícia Federal. "O que Lindôra fez é dizer que esse inquérito do Moraes não tem fundamento", afirmou o presidente, que descreveu a investigação da PF durante a live, ano passado, em que repetiu ataques sem provas sobre a segurança das urnas eletrônicas. Nesta terça, ele cobrou conclusão do caso. "É interferência dentro da PF? De quem? Não sei, mas não fecha esse inquérito", criticou Bolsonaro. "Quebraram sigilo do meu ajudante de ordens é um crime", disse, referindo-se à inclusão do coronel Mauro Cid nas investigações sobre o vazamento.

Fake news

O presidente também defendeu que o presidente do STF, Luiz Fux, seja incluído no chamado inquérito das Fake News por ter defendido, ontem, a lisura das urnas eletrônicas durante seu discurso de abertura do semestre do Judiciário.

"Fux está no mínimo equivocado, ou é fake news. Deveria então o Fux estar respondendo no inquérito do Alexandre de Moraes [das fake news], se fosse um inquérito sério", declarou Bolsonaro na entrevista à Rádio Guaíba. "Prezado Fux, qual país desenvolvido do mundo adota nosso sistema eleitoral? Que maravilha esse sistema eleitoral que ninguém quer".

Segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social (IDEA Internacional), 23 países usam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais e outros 18 as utilizam em pleitos regionais. Entre os países estão o Canadá, a Índia e a França, além dos Estados Unidos, que têm urnas eletrônicas em alguns estados. No Brasil, o modelo passou a ser usado em 1996 e nunca houve registro de fraudes ou violações ao sistema.

Bolsonaro também atacou o ministro Luís Roberto Barroso, do STF e ex-presidente do TSE, a quem chamou de "criminoso" por ter articulado junto a parlamentares a rejeição à proposta do voto impresso defendida pelo governo, e voltou a convocar seus apoiadores para os atos de 7 de setembro. "Vamos pela última vez às ruas para mostrar para aqueles surdos [ministros do STF] que o povo tem de ser o nosso norte", declarou, repetindo o apelo que marcou a convenção de lançamento de sua candidatura, mês passado.

De acordo com o presidente, os atos de 7 de setembro terão, pela primeira vez, um desfile cívico-militar em Copacabana. "O desfile deve durar no máximo uma hora, com tropas das Forças Armadas", disse ele. "Da nossa parte, ninguém vai querer protesto para fechar isso, fechar aquilo. Moralmente tem instituições se fechando. Dá para a gente ganhar essa guerra dentro das quatro linhas (da Constituição)", acrescentou. "Uma das frases mais mostradas lá deve ser a questão da transparência, em especial a eleitoral. Vamos ter eleições, mas queremos transparência."

Os atos bolsonaristas do Dia da Independência, em 2021, entre as ocasiões de maior enfrentamento entre Bolsonaro e as instituições brasileiras. Na Avenida Paulista, o presidente declarou à época que não mais cumpriria decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A ameaça ganhou reação do mundo político, que viu chance de crime de responsabilidade passível de impeachment. Pressionado, Bolsonaro teve de publicar uma carta à nação escrita pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) para diminuir a fervura.

Estadão / Dinheiro Rural

PF deflagra operação contra fraudes bancárias, com apoio da Febraban




A Polícia Federal (PF) deflagrou nesta terça-feira, 2, a operação "Não Seja um Laranja!" em 13 Estados e no Distrito Federal. Policiais federais e civis apreenderam bens de pessoas que cederam contas pessoais para receber recursos oriundos de golpes e fraudes contra clientes bancários. A operação tem apoio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).

A PF cumpriu 43 mandados com apoio das Polícias Civis do Distrito Federal e de São Paulo. Segundo a corporação, as fraudes investigadas chegam a R$ 18,2 milhões. "A Polícia Federal alerta a sociedade que: emprestar contas bancárias para receber créditos fraudulentos é crime, além de provocar um dano considerável aos cidadãos, quer pelo potencial ofensivo deste tipo de conduta delitiva", afirma a corporação, em nota.

Essa é a primeira operação de caráter nacional para coibir esse tipo de crime. As buscas e apreensões estão previstas na lei 14.155, que prevê punições severas para fraudes e golpes cometidos através de meios eletrônicos. As penas podem chegar a até oito anos de prisão, mais multa, e podem ser agravadas se os crimes utilizarem servidores mantidos fora do Brasil, ou se a vítima for uma pessoa idosa ou vulnerável.

Os crimes punidos pela lei incluem fraudes por meio de transações digitais, além de golpes como o de clonagem do WhatsApp, do falso funcionário de banco, e além dos golpes de "phishing", que capturam dados pessoais de um usuário através de mensagens e e-mails falsos que tentam induzi-lo a clicar em links suspeitos.

A operação é parte do Convênio Tentáculos, um acordo de cooperação técnica entre a PF e a Febraban assinado em 2017 para o combate a fraudes bancárias eletrônicas.

Estadão / Dinheiro Rural

Câmara acelera projeto que retira poder de governadores sobre PMs


Arthur Lira


A Câmara dos Deputados ressuscitou a intenção de retirar dos governadores poder e controle sobre o comando das polícias militares. Os deputados se preparam para votar nesta terça-feira, 2, um projeto de lei que institui a lista tríplice como forma de escolha dos comandantes-gerais, confere a eles um mandato de dois anos e dá autonomia orçamentária às PMs. A tendência é de aprovação da proposta.

Em junho, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e ministros receberam no Palácio da Alvorada parlamentares da Comissão de Segurança Pública e entidades representativas de policiais, que defenderam a aprovação de uma nova lei orgânica para as polícias: pressionavam pela votação como forma de aceno às bases eleitorais do presidente na segurança pública, já que a lei orgânica é mais abrangente e traz outros benefícios. O governo federal acompanhou todos os passos da preparação do projeto, elaborado em consulta às associações, e fez sugestões, via Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Originalmente, a limitação ao poder dos governadores havia sido incluída no projeto de lei orgânica das PMs. Uma ideia semelhante foi criada para nomeação dos delegados-gerais de Polícia Civil, que discutiam sua organização à parte. Nenhuma das duas leis orgânicas, no entanto, avançou a ponto de ser votada na Câmara.

Houve forte reação de governadores descontentes, depois que o Estadão revelou o teor dos projetos em gestação, em janeiro do ano passado. Ao longo de meses de debates, os parlamentares responsáveis pela elaboração da proposta recuaram e aceitaram retirar a lista tríplice e o mandato dos comandantes do escopo da lei orgânica. Não havia consenso nem sequer entre os atuais comandantes-gerais, que foram consultados por meio de um conselho nacional.

LISTA TRÍPLICE

Agora, deputados da bancada da bala decidiram retomar o assunto e acelerar a tramitação da proposta durante o esforço concentrado pré-eleitoral. A meta é colocar em discussão e votação o projeto para instituir a lista tríplice como forma de escolha dos comandantes. A última versão ainda garante aos comandantes a prerrogativa de "elaborar a proposta orçamentária" das corporações.

O projeto de lei é de autoria do deputado José Nelto (Progressistas-GO), e sofreu modificações sugeridas por parlamentares bolsonaristas. Fizeram contribuições Major Fabiana (PL-RJ) e Cabo Junio Amaral (PL-MG), ambos ex-policiais militares. Os favoráveis à ideia argumentam que visam reduzir a "ingerência política" e a influência partidária dos governadores na polícias.

O Projeto de Lei 164/2019 diz que o Comando-Geral de policiais e bombeiros militares será exercido por oficial da ativa do último posto, atualmente coronel, escolhido pelo governador a partir de lista tríplice. Essa lista seria encaminhada ao governador depois de uma votação interna sigilosa, que envolveria todos os oficiais da ativa. Pela proposta, podem concorrer à indicação os dez coronéis mais antigos.

O comandante-geral escolhido exerceria um mandato de dois anos e poderia ser reconduzido ao cargo, a critério do governador, uma vez. Já se o governador desejar destituir o comandante-geral, ele precisará, conforme o projeto, de aprovação por maioria de votos dos deputados estaduais ou distritais. Nenhuma dessas amarras existe atualmente, e a escolha dos governadores é livre dentro da corporação.

Para o Instituto Sou da Paz, a lista tríplice, além de limitar o controle do chefe do Executivo sobre o braço armado do Estado, fortalece a agenda corporativa dos comandantes e recrudesce disputas políticas internas, com campanhas para coronéis concorrerem à indicação a cada dois anos.

"O projeto que se propõe limitar ingerências políticas indevidas nas polícias acabaria, na prática, por acirrar ainda mais a politização entre seus membros, realidade incompatível com uma instituição militar e prejudicial para a própria função policial", afirmou o Sou da Paz por meio de nota.

COMISSÃO

O texto entrou na pauta da Comissão de Segurança Pública, dominada por deputados da base do governo e bolsonaristas ligados ao setor. Os deputados começaram a discutir o assunto em julho, mas adiaram a votação, por causa de pressões de governadores.

Pelo perfil do colegiado, os parlamentares envolvidos no debate entendem que o projeto será aprovado com facilidade, mas pode voltar a ser discutido de forma mais ampla se a lei orgânica retornar à pauta. O ritmo de votação pode ser expresso. O projeto segue direto ao Senado, sem passar pelo plenário da Câmara, se aprovado nas comissões de Segurança Pública e de Constituição e Justiça. Por sua vez, o Senado, por ser a Casa onde governadores e Estados têm mais peso, pode resistir à aprovação de um projeto do gênero.

Especialistas em segurança pública já manifestaram ressalvas à lista tríplice e disseram que a intenção de Bolsonaro e de sua base aliada no Congresso é desvincular as PMs dos governadores. Estudos já mostraram adesão de policiais militares a ideias autoritárias defendidas por ele e seus apoiadores em ambientes virtuais.

Estadão / Dinheiro Rural

Bombas no caminho do próximo governo - Editorial




Desarranjo fiscal, dívida mais cara, juros altos e baixo potencial de crescimento formam o legado previsto para o futuro presidente da República

Baixo crescimento econômico e alta dívida pública estão no horizonte brasileiro há muitos anos, mas o futuro pode ser mais sombrio com a herança deixada pelo atual governo. O Tesouro Nacional poderá enfrentar em 2023 um aumento de R$ 63 bilhões no custo de sua dívida e uma perda de recursos de R$ 178,2 bilhões, segundo cálculos de economistas do mercado. Empenhados em conquistar ganhos eleitorais, o presidente Jair Bolsonaro, ministros e parlamentares aumentam gastos, cortam impostos e criam enorme desarranjo fiscal para a União, os Estados e os municípios. Somados os três níveis de governo, o corte de receita poderá atingir R$ 281,4 bilhões, de acordo com projeções de especialistas. O próximo governo enfrentará economia estagnada, maiores gastos, juros maiores, inflação ainda elevada e compromissos inflados com medidas eleitoreiras.

Economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI), de outras organizações multilaterais e também do mercado identificaram há muito tempo o escasso potencial produtivo do Brasil, sua rigidez fiscal e seu elevado endividamento público. Previsões de médio e de longo prazos dificilmente incluem taxas anuais de crescimento superiores a 2%. Maior dinamismo só será possível com mais investimentos em capital fixo – máquinas, equipamentos, infraestrutura e outras obras – e em formação de capital humano. O País tem feito muito menos que o necessário em todas essas frentes. Para fazer mais, precisará de mais poupança, interna e externa, de melhores padrões de gestão pública e de um retorno duradouro às práticas de planejamento.

Como as contas oficiais são muito rígidas e sobra pouco dinheiro para investimento, principalmente em nível federal, o governo da União precisará reativar as parcerias público-privadas. Isso dependerá de uma administração muito mais competente que a dos últimos anos. Dependerá, também, de maior confiança na gestão das contas públicas e na condução de projetos. Contas públicas mais confiáveis serão essenciais para a redução dos juros e, portanto, para a mobilização de capitais privados para projetos de desenvolvimento.

Nenhum cenário tão luminoso é perceptível, nos próximos anos, a partir das condições atuais. Com o desarranjo fiscal deixado pelo atual governo, o poder federal terá muita dificuldade para administrar suas contas, conter o endividamento e investir em áreas estratégicas como educação, saúde, ciência e tecnologia. Também será complicada a mobilização de capital privado para obras de infraestrutura, se o quadro geral permanecer incerto e os juros continuarem muito altos.

Algum ganho econômico e fiscal ocorrerá, muito provavelmente, se o novo governo, como é natural esperar, for melhor que o do presidente Bolsonaro. Mas seu espaço de manobra será com certeza limitado pela herança encontrada a partir de 1.º de janeiro. Pelas últimas estimativas do mercado, o primeiro ano será muito difícil e alguns obstáculos, como juros altos, estarão presentes pelo menos até 2025.

A inflação no próximo ano ainda ficará em 5,33%, segundo a mediana das projeções colhidas pelo Banco Central na pesquisa Focus. Nesse caso, o teto da meta, fixado em 5%, será superado pelo terceiro ano consecutivo. A taxa básica de juros, a Selic, estará em 11% no fim de 2023 e em 8% no encerramento de 2024, muito alta, muito custosa para o Tesouro e muito inconveniente para o consumo, a produção e o investimento em capacidade produtiva. Até lá se terá completado metade do mandato do novo presidente.

A mediana das estimativas do mercado aponta para o Produto Interno Bruto (PIB), segundo a pesquisa, expansão de apenas 0,40% em 2023, 1,70% em 2024 e 2% em 2025. Com esse crescimento muito vagaroso, inflação ainda alta e juros elevados, a modernização do sistema produtivo será difícil e a criação dos empregos necessários, muito improvável. Isso compõe boa parte da herança prevista, por enquanto, para o próximo presidente. Resta, de toda forma, a expectativa de encerramento, em 31 de dezembro, de quatro anos excepcionalmente ruins.

O Estado de São Paulo

Lições do golpista arrependido




Lacerda articulou carta em defesa da democracia em 1966

Por Andrea Jubé 

“Assim como o aliado de hoje pode ser o inimigo de amanhã, o inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje”. Quem disse essa frase? Dica: um político de expressão nacional, dono de uma oratória ímpar e no contexto da criação de uma Frente Ampla em defesa da democracia. Este político convidou antigos adversários para dar corpo ao movimento, e reuniu lideranças de todos os matizes, imbuídos da missão de lutar pela realização de eleições livres e gerais no Brasil.

A declaração e o movimento político descritos no parágrafo anterior ressoam atuais. Dialogam com a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, que será lida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no dia 11 de agosto, e que já reuniu mais de 600 mil assinaturas, contando com adesões de empresários, banqueiros, artistas, advogados, jornalistas e demais representantes da sociedade civil. “Independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos as brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições”, diz um trecho do documento.

Já a afirmação de que o “inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje” poderia ser atribuída ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que transformou o ex-adversário Geraldo Alckmin em aliado e candidato a vice na chapa pela qual concorrerá à Presidência.

Essa frase, todavia, não é atual, mas é histórica. Foi dita há 56 anos pelo então ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, uma das principais lideranças da União Democrática Nacional (UDN), em uma entrevista à revista Manchete. Em 1966, em reação ao Ato Institucional (AI) 2, que suspendeu a realização de eleições no Brasil, Lacerda arregimentou ex-adversários como Juscelino Kubitschek e João Goulart para se unirem contra a ditadura militar. Lacerda e Juscelino eram favoritos na sucessão presidencial de 1965 - que em razão da ditadura de 21 anos, não ocorreu.

Com o golpe militar de 1964, Juscelino seguiu para o exílio em Lisboa. Como Lacerda apoiou o ato, alinhando-se aos generais, ele foi preservado no cargo de governador. Lacerda acreditava que o regime militar seria transitório e ele concorreria à Presidência no ano seguinte, com o apoio da caserna.

Lacerda somente rompeu com os militares após a suspensão das eleições. A Frente Ampla arquitetada por ele consumou-se com a publicação de um documento no jornal Tribuna da Imprensa, do qual ele havia sido sócio, em outubro de 1966, reivindicando a realização de eleições diretas gerais, reforma partidária, desenvolvimento econômico e uma política externa soberana. A frente ficou em atividade até início de 1968, quando foi extinta pelos militares. No fim do mesmo ano, com o AI-5, Lacerda foi preso e teve os direitos políticos cassados. Em 1977, após um infarto, foi enterrado com o sonho de concorrer à Presidência.

Apesar das semelhanças com a Frente Ampla que Lula tenta articular em torno de sua candidatura e do movimento suprapartidário em defesa da democracia que está em campo, a memória de Carlos Lacerda foi resgatada justamente por um aliado do presidente Jair Bolsonaro, que tem contestado o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.

Há uma semana, na convenção nacional do Progressistas (PP), que confirmou o apoio da legenda à reeleição do presidente, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira reverenciou o líder da UDN. “De vez em quando, leio alguns discursos de um ex-governador do seu Estado, grande conservador, chamado Carlos Lacerda”, afirmou, dirigindo-se a Bolsonaro.

Segundo Nogueira, nos últimos tempos, os brasileiros tinham receio de assumir o perfil “mais conservador”, mas graças a Bolsonaro, o brasileiro hoje teria orgulho de se declarar “de direita”, ou “conservador”.

Sem dúvida, Lacerda entrou para a história como um dos políticos de maior expressão da direita brasileira, embora no início da sua trajetória tenha flertado com o comunismo. Os últimos anos como democrata de ocasião contradizem seu histórico de apoiador do golpe militar de 1964.

De inteligência rara e oratória inflamada, como jornalista, foi um dos primeiros a explorar a televisão na década de 1950. Lacerda seria sem dúvida inspiração para Bolsonaro. Em tempos em que as redes sociais eram ficção científica, o político agarrava-se a um telefone de fio, pelo qual respondia a perguntas dos telespectadores da TV Tupi, enquanto propalava denúncias contra o presidente Getúlio Vargas e os comunistas.

Em 1965, antes de romper com os militares, Lacerda criticou os ministros do Supremo Tribunal Federal, que libertaram o ex-governador Miguel Arraes, considerado um subversivo. “São criminosos que se arvoram em juízes”, sibilou.

Opositor empedernido de Vargas, ocupava rádio e televisão com ameaças ao adversário na campanha de 1950. “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”, bradava.

Em 5 de agosto de 1954, foi alvo do atentado da Rua Tonelero, episódio catalisador do ato trágico do presidente, que deu cabo da própria vida, 19 dias depois.

Pela oposição veemente e discursos incendiários, ganhou da imprensa adversária, capitaneada por Samuel Wainer, o sugestivo apelido de “O Corvo”. Após a morte de Vargas, voltou à carga contra Juscelino e seu candidato a vice, João Goulart, eleitos no pleito de 1955, cobrando intervenção militar. Mas o “contragolpe” orquestrado pelo General Henrique Teixeira Lott assegurou a posse de JK e Jango em 1956.

Ciro Nogueira exaltou o conservadorismo de Lacerda. Mas pelo papel desempenhado a partir de 1966, é de se supor que Lacerda subscreveria a carta democrática, tão criticada pelo governo. É o passado dando lições de vida ao presente.

Valor Econômico

Não há neutralidade sobre a democracia




Colocar suspeição sobre as urnas eletrônicas não é ponto de vista. É golpismo

Por Thomas Traumann* (foto)

O Brasil se tornou os Estados Unidos com dois anos de atraso. Em 2016, Donald Trump se elegeu presidente nos EUA com uma combinação de nacionalismo tosco (“Faça a América grande de novo”), antipolítica (“Vamos drenar o pântano da corrupção em Washington”) e mentiras (denúncias forjadas de um esquema de pedofilia envolvendo a cúpula do Partido Democrata). Em 2018, Jair Bolsonaro venceu mimetizando a fórmula do bufão americano. Em 2020, Trump perdeu a reeleição e instigou seus seguidores a tentar tomar o poder à força. Dois anos depois, Bolsonaro ameaça um golpe preventivo cuja justificativa é o medo de ter menos votos que o adversário. À diferença de Trump, no entanto, Bolsonaro tem o apoio do Exército.

Saber o que o futuro reserva permite que as pessoas se preparem. Se for uma inundação, os moradores das regiões de risco devem deixar suas casas. Se for uma tempestade, os motoristas são avisados a evitar as ruas que alagam. Mas como uma sociedade se prepara contra a ameaça de contestação da vontade da maioria dos eleitores?

Primeiro, dando nome às coisas. Colocar suspeição sobre as urnas eletrônicas não é ponto de vista. É golpismo. Bolsonaro engaja seus seguidores contra a Justiça Eleitoral porque todas as pesquisas mostram sua derrota no segundo turno. Desacreditar as urnas e inventar uma conspiração entre os ministros do TSE e STF, a oposição e a mídia é a tentativa de repetir o discurso antissistema que o ajudou em 2018. Desta segunda vez, como farsa.

Chamar as coisas pelo nome é o primeiro passo. O segundo é diferenciar quem acha que flores e ervas daninhas são a mesma coisa. Lançada pela Faculdade de Direito da USP, a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros é uma linha divisória que não permite titubeio. É possível a um torcedor do Botafogo estar indiferente a um Fla x Flu, assim como alguém pode não se importar se um diz bolacha e outro diz biscoito. Mas não existe neutralidade sobre a democracia. Constranger quem considera um estorvo o respeito ao resultado das urnas é uma diferença civilizatória.

No último sábado, dia 30, na convenção do partido Republicanos, Bolsonaro anunciou que o tradicional desfile militar na Avenida Presidente Vargas, Centro do Rio, na manhã do Dia da Independência, será transferido para a tarde, em frente ao Forte de Copacabana, onde ele pretende discursar contra a Justiça Eleitoral.

— Às 16h do dia 7 de setembro, pela primeira vez, as nossas Forças Armadas e as nossas irmãs, forças auxiliares, estarão desfilando na Praia de Copacabana, ao lado do nosso povo — anunciou.

Mesclar militares com militantes é o sonho dourado do bolsonarismo. Simbolizaria a fusão das vontades do soldado e do cidadão, ilusão que alimentou quarteladas e golpes por todo o século XX.

No ano passado, Bolsonaro sequestrou as comemorações do Dia da Independência para ameaçar ministros do STF e do TSE. Por pouco, seus seguidores não invadiram o prédio do STF. Um ano depois, sob risco real de ser defenestrado do Palácio do Planalto, o grau de virulência e intimidação bolsonarista aumentou. Levar soldados armados para o que, na prática, será um comício pela reeleição é dar aos bolsonaristas a sensação de estar acima da lei, e ao Exército a de estar à margem dela.

Para evitar que o 7 de Setembro de Bolsonaro vire uma versão tropical do 6 de Janeiro de Trump, é preciso deixar claras desde já as punições a quem tentar um golpe de Estado. Nos EUA, quase 200 invasores do Capitólio foram condenados pela tentativa de melar a eleição de 2020, e as investigações em curso ainda podem impedir a tentativa de Trump de retornar à Casa Branca.

No Brasil, a linha entre a defesa legítima de uma candidatura e o atentado à vontade popular precisa ser delimitada. Bolsonaro faz a retórica pública de levar a eleição na marra porque, até agora, ninguém o ameaçou de volta. É hora de a sociedade, a Justiça e os políticos que acreditam na democracia afirmarem em voz alta que não haverá anistia para quem atentar contra a democracia.

*Thomas Traumann é jornalista e pesquisador da FGV/DAPP

O Globo

A Carta às brasileiras e aos brasileiros**




À véspera das eleições, a Carta deve ser lida e relida pelos brasileiros com a mesma devoção que os cristãos deveriam prestar à leitura do Sermão da Montanha

Por Luiz Gonzaga Belluzzo* (foto)

“Nesse momento não tem empresário, jurista ou artista, é a defesa de todos, das pessoas que começam a prestar mais atenção e perceber que as coisas estão transbordando”. Assim falou ao Valor o empresário Horácio Lafer Piva.

A “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” será lançada na Faculdade de Direito da USP em 11 de agosto, no Pátio das Arcadas.

Entre tantos parágrafos valiosos, ousei escolher dois que me tocaram fundo:

“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude”.

Mais adiante: “Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática”.

À véspera das eleições, a Carta deve ser lida e relida pelos brasileiros com a mesma devoção que os cristãos deveriam prestar à leitura do Sermão da Montanha. Diante da empolgação cívica que avassala o país não resisti a cuidar da devoção democrática do mestre e amigo Ulysses Guimarães.

Redigido por muitas mãos no alvorecer dos anos 1980, sob a inspiração de Ulysses Guimarães, o documento “Esperança e Mudança” dá testemunho de um Brasil que, auguramos, ainda possa resistir aos esbirros do autoritarismo e da estupidez.

“...A crise nacional não encontrará solução sem mudanças profundas. Mudanças que só poderão ter início com o fim do arbítrio e da exceção. Mudanças que haverão de nascer do reencontro do povo com o poder político. A sociedade brasileira anseia pela Democracia, luta por ela, sonha com ela. A sociedade repele o arbítrio através de todas as suas formas de representação de interesses e de organização social: partidos políticos, movimentos sociais, organizações comunitárias, igrejas, sindicatos, organizações patronais, profissionais, movimentos setoriais e culturais.

Democracia é Estado de Direito, liberdade de pensamento e de organização popular, respeito à autonomia dos movimentos sociais e repousa na existência de partidos políticos sólidos.

Democracia significa voto direto e livre, significa restauração da dignidade e das prerrogativas do Congresso e do Poder Judiciário, significa liberdade e autonomia sindical, significa liberdade de informação e acesso democrático aos meios de comunicação de massa. Democracia implica democratização das estruturas do Estado, implica resgatar a soberania nacional, implica redistribuição da renda, criação de empregos e bem-estar social crescente. A Assembleia Nacional Constituinte haverá de ser o berço de tudo isso - o berço da Democracia -, o berço pacífico e representativo dos anseios do povo”.

Em um domingo paulistano, logo após a derrota das eleições diretas, Ulysses reuniu mais uma vez em sua casa os que estiveram com ele no combate persistente contra a ditadura. (Vou invocar aqui o testemunho dos meus amigos João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho e José Gregori).

Ulysses levantou-se para perorar o seu Sermão aos Homens da Planície Política, aos que imaginavam convencê-lo das conveniências da disputa no Colégio Eleitoral. Dentre tantas, guardei as frases que provocaram lágrimas em sua mulher, Dona Mora, sentada num sofá mais distante da pequena aglomeração de companheiros de seu marido. “Para o Colégio Eleitoral eu não vou. Seria uma facada nas costas do povo que se mobilizou nas praças e nas ruas para participar dos comícios pelas Diretas Já. Digo a vocês, a conquista da democracia não será completa sem a manifestação da vontade popular”.

A campanha popular das Diretas foi derrotada com a cumplicidade de muitos que estavam na oposição, mas temiam a “radicalidade” de um governo eleito pelo povo. Por isso, os náufragos do regime militar conseguiram chegar até a praia, acolhidos pelo bote salva-vidas capitaneado pela turma do deixa-disso.

Apesar da campanha pelas Diretas ter conseguido forte mobilização popular, não foi capaz de vencer as casamatas do poder real que, desde sempre, comandam a política brasileira. Essa turma não tem o hábito de dar refresco ao inimigo. Quanto aos princípios jurídicos, devem ser respeitados se o povaréu não botar as manguinhas de fora.

Nos eflúvios de civismo democrático que se desgarram das letras da Carta assinada por milhares de brasileiros em defesa da soberania popular, não posso negar ao leitor as palavras de Ulysses Guimarães na sessão de promulgação da outra Carta, a Magna: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda, Brasil!”

Em 1992 os caras-pintadas acorreram às ruas para pedir o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Pouco antes, em longa conversa comigo na presença do jornalista Roberto Müller Filho, Ulysses Guimarães desfiou temores e preocupações diante do iminente impeachment do presidente eleito pelo voto popular.

Os receios do Senhor Diretas concentravam-se no “vício antidemocrático” dos donos do poder, habituados a manejar os cordéis do arbítrio a seu talante e ao sabor de seus interesses.

Às vésperas da morte trágica, Ulysses compreendeu que a campanha popular pelas eleições diretas e a Constituição ainda sofriam o assédio insidioso, persistente do velho e sempre renovado arranjo oligárquico que controla a vida dos brasileiros.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

**Homenagem a Ulysses Guimarães

Valor Econômico

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