Por: Carlos Chagas
BRASÍLIA - Ao assumir o primeiro mandato, mesmo sem ter lido o fenomenal "1984", de George Orwell, o presidente Lula decidiu copiar parte do singular modelo de governar exposto no texto. Porque, pelo livro, aliás, escrito em 1937, os donos do poder ditatorial no mundo inteiro utilizavam o artifício de "duplipensar". Traduzindo: os povos, todos escravizados, deveriam acostumar-se a viver sabendo que amor era ódio, paz era guerra, preto era branco. E assim por diante.
O nosso "Grande Irmão" do lado de cá do mundo aprimorou a controversa estratégia. Não apenas passou a "duplipensar", como inaugurou o "dupligovernar".
Nos principais setores de atuação do governo, o Lula sobrepôs e continua até hoje aplicando conceitos, programas e personagens, uns contra os outros. Começou na política externa. O ministro de Relações Exteriores era e ainda é o embaixador Celso Amorin, mas, no Palácio do Planalto, a política externa era e ainda é conduzida pelo assessor especial, Marco Aurélio Garcia.
Não raro conflitam-se as metas de lá e de cá, como se confundem os interlocutores internacionais do Brasil. Mas teve e tem mais, porque o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, despachou-se por meio mundo, celebrando acordos, acalmando credores e expondo uma terceira face da política externa brasileira.
Catapultado, Dirceu foi substituído pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, que também percorre os vários continentes, exercendo funções que dentro da racionalidade seriam do Itamaraty.
Mas tem mais. Na política econômica, registraram-se desde o início o "duplipensar" e o "dupligovernar". Mandava Antônio Palocci, na Fazenda, ou mandava Henrique Meirelles, no Banco Central? Hoje, em vez de Palocci, entrou em campo Guido Mantega, mas a dualidade é a mesma. Luiz Furlan, no Desenvolvimento Industrial, como agora Miguel Jorge, parecem pilotos de um avião proibido de aterrissar, mesmo com o combustível esgotado.
No Meio Ambiente, outro video-tape dessa estranha maneira de governar. Com Marina Silva, até pouco, e agora com Carlos Minc, a política ambiental fugiu do respectivo ministério. O leme encontra-se disputado por Mangabeira Unger, Reinhold Stephanes e até pelo governador Blairo Maggi, de Mato Grosso, cada qual buscando a sua praia. Trata-se de uma sopa de letrinhas em alfabetos diversos, do latino ao árabe. Não dá para formar palavra alguma, quanto mais uma frase.
Os exemplos repetem-se todos os dias. Quem coordena e dirige a reforma agrária? O ministro da pasta, Guilherme Cassel, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, ou o ministro da Justiça, Tarso Genro?
Numa palavra, o "Grande Irmão" a todos confunde e a todos controla. Talvez por isso seja tão popular e, quem sabe algum dia, entre lágrimas, venhamos a reconhecer: amamos o "Grande Irmão"...
Perda fundamental
Perdeu o Senado uma de suas maiores figuras, aliás, magro, seco, inflexível e ético como poucos. O senador Jefferson Peres já faz falta, mesmo falecido há quatro dias. Era tão competente como representante do Amazonas que chegava a imaginar serem todos como ele, em matéria de objetividade e dignidade. Clamava pela ação do governo na região e não fazia caso das ameaças de internacionalização, registrando sempre que nem a ONU nem qualquer organização internacional teria poderes e condições para tanto.
Muito menos os Estados Unidos, dizia, porque os tempos eram outros, diversos da política do "big stick". Seus amigos alertavam para o perigo de tanto idealismo, tendo em vista que depois de Teddy Roosevelt os americanos meteram-se em mil e uma guerras e invasões, culminando agora com o Afeganistão e o Iraque. Ele sorria e apelava para que tivéssemos um pouco mais de confiança no gênero humano. Mas não deixava de brandir tacape e borduna no governo, qualquer governo, aliás, não apenas do Lula. A política para a floresta é que estava errada, como vai continuar errada depois da partida de Jefferson Peres para o céu.
A hora do basta
Tudo tem limite. São nossos irmãos, credores de uma civilização que os dizimou, merecem todos os cuidados do poder público, como brasileiros que são, mas os povos indígenas estão exagerando. Só na semana que passou atropelaram quantas vezes a lei?
Nada há a opor a que apareçam pintados, seminus, cheios de penas, com arcos e flechas nas reuniões de seu interesse. Trata-se da cultura deles, que devemos respeitar. O que não dá para aceitar é que compareçam armados de facões e, pior ainda, os utilizem para demonstrar seu desagrado, ferindo pessoas que defendem interesses diversos dos deles. Ou que seqüestrem funcionários públicos com invulgar rotina, interrompam o tráfego em rodovias e promovam entreveros que nem sempre se devem ao fato de terem sido provocados.
Existem tribos perdidas no fundo da floresta ainda vivendo como há mil anos, mas os povos indígenas que se manifestam, democraticamente ou não, falam pelo telefone celular, manobram computadores e moram nas cidades, freqüentando as aldeias apenas para marcar posição. Estão e mais querem aculturar-se, apesar das pinturas e das danças de guerra.
Não são mais incapazes, conforme o velho Código Civil de Clóvis Bevilacqua, mas relativamente capazes. Merecem todos os cuidados do poder público, que tem sido uma lástima e uma vergonha para nós, mas permitir que façam justiça pelas próprias mãos é coisa de ONGs malandras, interessadas em dominá-los e em transformar tribos em nações, para depois dominá-las.
No recente episódio de Altamira, quando agrediram com bordunas e atacaram um engenheiro da Eletrobrás com facões, importa revelar: quem comprou cem desses facões no comércio local foi o Cimi, órgão da Igreja. Lutar para preservar, sim. Lutar para impedir a exploração econômica, também. Mas lutar porque alguém pensa e se manifesta diferente deles, jamais...
Os cavaleiros de Granada
Reuniram-se em Brasília quase todos os presidentes das Repúblicas da América do Sul. Cada discurso mais vibrante do que outros, todos em defesa da soberania do continente, da Amazônia, dos povos que habitam essa e outras regiões. Convescotes, também, abraços, tapinhas no ombro, até de personagens em litígio. Qual, no entanto, o resultado prático da criação da União das Nações Sul-Americanas?
Nenhuma situação que lembre os versos de Cervantes sobre os cavaleiros de Granada, aqueles que alta madrugada, brandindo lança e espada, saíam em louca cavalgada. Para quê? Para nada...
Fonte; Tribuna da Imprensa