domingo, dezembro 07, 2025

Cegueira coletiva do eleitorado: reflexões sobre as escolhas e os impactos na sociedade

 Por: Elisiane Andrade*

07 de dezembro de 2025

O parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988 afirma que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Além disso, a Carta Magna estabelece que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”.

Esses princípios consagram a soberania popular, exercida de forma representativa e indireta, quando o povo elege seus representantes — presidente, governadores, prefeitos, deputados, senadores e vereadores, para governar e legislar. Esses representantes deveriam, de fato, agir em defesa dos interesses da população. No entanto, o que se observa na maioria dos executivos e casas legislativas é o contrário: muitos dos eleitos utilizam o poder para atender a interesses próprios ou de seus grupos políticos, ou setores econômicos.

O voto é um instrumento poderoso quando utilizado de forma consciente, consolida-se como ato essencial de cidadania e pilar da democracia. Mas também pode se transformar em uma armadilha quando mal empregado. As consequências dessa má escolham são devastadoras, especialmente para os grupos mais vulneráveis: mulheres, crianças, negros, indígenas, populações empobrecidas e periféricas. O resultado é o aprofundamento das desigualdades, impactos ambientais, o aumento da exclusão social, da violência e da escassez de políticas públicas essenciais, como educação, saúde, moradia e segurança — pilares fundamentais da dignidade humana.

Votar é uma grande responsabilidade. Não basta apenas votar; é preciso saber votar. O voto é uma conquista histórica, especialmente em se tratando de uma jovem democracia como a nossa. Nos últimos anos, temos testemunhado também, a banalização da política, muitas vezes orquestrada por grupos que se beneficiam da desinformação e da descrença popular em relação as instituições políticas.

O retrato atual do Congresso Nacional, das assembleias estaduais e câmaras municipais, bem como das gestões dos municípios e dos estados em sua maioria, revela o que podemos chamar de cegueira coletiva que atinge uma parcela significativa do eleitorado brasileiro. O resultado desta cegueira tem sérias consequências na vida da população, principalmente, os grupos que mais precisam da proteção do Estado.

Entre os episódios recentes da política nacional, destaca-se a megaoperação realizada em 28 de outubro nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, autorizada pelo atual governador, que resultou em mais de 122 mortes, em sua maioria de jovens negros. A operação dividiu opiniões nas redes sociais, mas escancarou o descaso do poder público com as favelas, territórios historicamente marcados pela ausência de políticas de urbanização, lazer, educação e cultura. Tal episódio evidência governos autoritários que utilizam falsos discursos de combate ao narcotráfico que justificam a matança de jovens pobres, negros na periferia, ignorando as realidades das periferias, desconsiderando a vida de trabalhadores, mães e crianças que ali residem.

No âmbito local, a má representação também se faz presente. Exemplo disso foi a aprovação da Reforma da Previdência Municipal em Manaus, de autoria do prefeito, aprovada pela base aliada na Câmara Municipal e sancionada em 19 de novembro de 2025. Todo o processo ocorreu sem nenhum diálogo com os servidores, mesmo diante de pareceres que apontavam inconstitucionalidades. Um dos pontos mais graves da reforma foi o aumento de sete anos no tempo de contribuição das mulheres, penalizando ainda mais quem já enfrenta dupla ou tripla jornada de trabalho.

Ainda na esfera nacional, outro retrocesso, advindo dos maus representantes, foi a aprovação do Projeto de Decreto Legislativo (PDL 3/2025), que cancela a Resolução 258/2024 do Conanda e dificulta a realização de abortos em crianças e adolescentes, aprovado com 317 votos favoráveis. Essa aprovação demonstra um Congresso conservador, inimigo do povo, onde grupos majoritários pautam a desumanização, a hipocrisia e naturalizam o estupro e a pedofilia. É uma verdadeira aberração, que configura dupla violência e negação de direitos.

Ou seja, se fosse um Congresso sério e responsável, faria coro ao enfrentamento da violência sexual e garantiria mecanismos de proteção às crianças e aos adolescentes, especialmente em um país como o Brasil, que registra mais de 11 mil partos resultantes de violência sexual contra meninas menores de 14 anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Direito de Família (2024). Dados do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde — Volume 54, nº 8, de 29 de fevereiro de 2024 — apontam que, entre 2015 e 2021, foram notificados 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.

Outro retrato da má representação no Congresso brasileiro, no qual prevalecem os interesses políticos e econômicos, pode ser visualizado com a derrubada de 52 vetos à Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Mesmo sob pressão popular e após intenso debate na COP 30, ocorrida em Belém, onde o Brasil portou-se como liderança internacional em relação às questões ambientais e climáticas, e diante do protagonismo da Cúpula dos Povos, com o grande levante das diversas forças populares mostrando caminhos viáveis para mitigar a crise climática e as questões ambientais, o PL da devastação foi aprovado. Reforçando, mais uma vez, a arrogância, o autoritarismo, o discurso hipócrita e a falta de compromisso com as populações mais afetadas, além de fomentar ainda mais os conflitos nos territórios tradicionais.

Essa cegueira coletiva, que leva eleitores a apoiarem políticos que mais tarde os prejudicarão, farão mandatos contra o povo, nos remete à metáfora presente no romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Na obra, o autor aborda temas como a cegueira moral e ética, a falta de empatia e solidariedade, a desumanização diante do medo e do caos, e a crítica social e política à indiferença e à corrupção das sociedades modernas. A personagem da mulher do médico representa a esperança e a compaixão, sendo a única a manter a lucidez em meio ao colapso coletivo — um paralelo poderoso para a realidade política brasileira.

Essa cegueira coletiva é alimentada por discursos de ódio disseminados nas redes sociais, pela proliferação de fake news, pelo avanço de setores religiosos neopentecostais que distorcem valores morais e pela banalização intencional da política, estratégia que fortalece grupos mal-intencionados nos espaços de poder e decisão. Assoma-se a isso o percentual significativo de não-leitores, que, conforme a Bienal do Livro Rio — 6ª edição do “Retrato da Leitura no Brasil” (2025), aponta 53% de não-leitores contra 47% de leitores. Ademais, a cegueira persiste quando boa parte da população não acompanha a atuação dos mandatos em suas respectivas representações.

Esses breves retratos, pontuados nessas poucas linhas, deixam para nós, eleitores/as, um chamado à reflexão urgente: romper com essa cegueira é um ato de resistência, lucidez democrática e dignidade cidadã. É enxergar além dos discursos manipuladores e reafirmar o papel do povo nas decisões que impactarão a sociedade para além do dia da eleição. Ano que vem tem eleição; é hora de relembrar e trazer à memória o comportamento político dos atuais representantes. Diante desses cenários, fica evidente que o mau uso do voto traz consequências profundas e duradouras para a sociedade. É urgente que o eleitor compreenda que sua escolha define o futuro da cidade, do estado e do país.

(*)Elisiane Andrade é professora, graduada em Pedagogia, especialista em Gestão Pública, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e integrante do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social em Gênero, Política e Poder (Gepos). Atua como ativista na Marcha Mundial das Mulheres.

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