Por Carlos Andreazza (foto)
É preciso tratar de PEC da Transição, do risco de normalização do estado de emergência fiscal; como se pudéssemos viver num waiver permanente. Não podemos. Ou: não deveríamos. Não se pode descartar, porém, que governos gostem da ideia. A prática está aí. Temos nos bancado assim. Forjando orçamentos de mentira e depois lhes pendurando gastos de verdade.
Assim será para 2023. Está dado. E sejamos justos. Já estava — como se diz? — precificado que, qualquer que fosse o vencedor, na porteira arrombada por Bolsonaro passariam gastos extras para a manutenção do auxílio a R$ 600. E Lula prometera cuidar do salário mínimo imediatamente. Será ingenuidade esperar que o presidente eleito cometa estelionato eleitoral com o país cindido conforme está.
Para 2023, pois, só se pode cobrar, com sorte, que o final de 2022 traga algum teto para como se violará o teto. Pode-se também exigir, ainda que para fazer papel ridículo, que 23 venha com nova âncora fiscal para o lugar de um teto que, destruído por Bolsonaro, já não existe mais — sendo inadequado o emprego anterior do verbo violar. Ou será violado o que inexiste?
O mundo real nos autoriza a torcer. Em 22: para que se limite o valor fabricado à margem do Orçamento; para que se desista de alargar agora a faixa de isenção de IR, o que resultaria em perda de arrecadação. Em 23: para que se apresente um novo marco fiscal ao vácuo do finado teto.
Estamos falando do futuro. A rigor, de 24. De 23 para 24. O governo terá de buscar algum realismo orçamentário e mostrar como controlará gastos. Políticas públicas devem derivar de escolhas e caber na conta. Algo ficará de fora. Atentemos a isso.
Antes será urgente olhar, hoje, para o que se normaliza de modo a renovar a licença para gastar no ano que vem. O que terá tornado viável, fluente, de PEC Kamikaze à da Transição, um súbito compromisso do Congresso com novo jorro de bilhões? O que terá feito a solução PEC um repentino desejo parlamentar?
O orçamento secreto, que comprou, na forma do pacotão de bondades, o financiamento à competitividade de Bolsonaro no esforço pela reeleição e que ora vende facilidades — em troca de permanecer — à aprovação de quantos bilhões extras o novo governo quiser.
A PEC da Transição é a da manutenção do orçamento secreto e da reeleição de Lira. A aprovação da PEC, atrelada a Lira, atrela o governo Lula a Lira e seus sócios. Renan Calheiros, inimigo do lirismo nas Alagoas, já estrilou. Talvez não haja alternativa.
Aprovar a PEC da Transição é liberar os bilhões tanto quanto aprovar a transição para que o orçamento secreto — que o presidente eleito prometera derrubar — se converta em instrumento de navegabilidade para o governo Lula. Aprovar a PEC da Transição também sendo aprovar, sob o compromisso de não mexer com o orçamento secreto, a reeleição de Lira; como se a sociedade que o consórcio parlamentar firmara com Bolsonaro migrasse, compulsoriamente, para Lula.
Talvez não haja — não na política —alternativa.
O orçamento secreto — que saiu gigantesco das urnas, ao mesmo tempo reeleito e grande eleitor — vai ficando, de repente, admissível, porque o novo governo precisa governar. E o orçamento secreto dá votos. Para a agenda do governo e para as agendas de Lira e Pacheco. Coincidência de interesses. Estabelece-se a sociedade; estabelecido o bicho pelos costumes parlamentares nos gozos de já três orçamentos.
Não há — não na política — alternativa.
Ouve-se que os senhores do Congresso estariam dispostos a mexer nas emendas do relator. O truque é óbvio. Projetada a sombra de que o Supremo possa agir, correm os imperadores orçamentários para oferecer, afinal, a transparência. É o de menos. O mais grave, no exercício do orçamento secreto, sendo o desequilíbrio que sua natureza determina.
Estariam, liras e pachecos, dispostos a relaxar a mão autoritária — que lhes dá o poder concentrado — com que decidem os destinos dos bilhões? Duvido. O problema — repito — não é somente a falta de transparência. É sobretudo a desigualdade que anaboliza um Ciro Nogueira. Bilhões despejados — com maior ou menor publicidade — para aliados, em detrimento de adversários.
Só há solução via STF.
O Supremo tem de ser fiel à Constituição — radical, portanto — ao declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Já. Sem modulações. Sem a farsa de cuidar apenas para que os patronos das emendas sejam conhecidos. Isso não bastará.
Em vez de se esconder atrás da fachada de Alexandre de Moraes, a quem concedeu poderes excepcionais inconciliáveis com a Carta (e esse gênio não voltará mais à lâmpada), o STF deveria concentrar energia em derrubar, colegiadamente, a fachada — a emenda do relator — que formalizou um complexo esquema também de corrupção que, pervertendo o orçamento público, sequestrou a República.
Não se pode transigir com o orçamento secreto. Governos transigirão. A Suprema Corte não pode. Ou não será.
O Globo