Diretor da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão diz que Orçamento Secreto foi uma maneira de a elite política assaltar diretamente os cofres públicos e teme que esse recurso esteja disponível no governo Lula.
Entrevista a Duda Teixeira
O economista Bruno Brandão dirige a Transparência Internacional no Brasil. Nessa ONG de combate à corrupção, com sede em Berlim e presença em 130 países, ele acompanha de perto, há mais de dez anos, os avanços e retrocessos nas leis e na atuação das instituições nacionais.
Sua maior preocupação atualmente é com a institucionalização da corrupção no Brasil. Ele argumenta que, após a proibição do financiamento privado de campanhas e a atuação da Lava Jato, que tornou mais arriscada a prática do caixa 2, os políticos reagiram criando o Orçamento Secreto. Segundo ele, trata-se de uma maneira de assaltar diretamente os fundos públicos, sem que o dinheiro precise passar pelas contas de empresas privadas.
O temor é que esse mesmo esquema que garantiu governabilidade a Jair Bolsonaro seja usado por Lula em seu próximo mandato. “O petista chegará para governar um país dividido, com um Congresso em que ele dificilmente terá maioria. Ele precisará se esforçar bastante para conseguir governabilidade, e esses recursos, os mais sujos da barganha política, estarão disponíveis para Lula“, diz Brandão. Segue a entrevista.
O que podemos esperar da corrupção no próximo governo Lula?
A eleição do PT traz incertezas sobre a pauta anticorrupção. O histórico do partido é paradoxal nessa matéria. Quando esteve na Presidência, o partido esteve envolvido em esquemas imensos de corrupção. Esses feitos são inegáveis e tiveram graves consequências políticas, sociais, econômicas e ambientais. Por outro lado, as administrações de Lula e Dilma Rousseff foram responsáveis pelos maiores avanços na capacidade de enfrentar a corrupção. Ocorreram iniciativas como a Lei Anticorrupção, a Lei de Acesso à Informação e a Lei de Combate ao Crime Organizado. Tivemos o fortalecimento da capacidade técnica de instituições como a Polícia Federal. Órgãos de controle, em especial o Ministério Público Federal e a Procuradoria-Geral da República, tiveram independência de ação. Também foi um governo que garantiu a defesa e a ampliação do espaço cívico, que é fundamental para o controle social da corrupção. Então temos uma interrogação agora de qual PT irá governar: aquele que avançou a capacidade de enfrentar o combate a desvios, promoveu a transparência e a integridade das instituições ou aquele que participou de enormes esquemas de corrupção.
O PT realizou alguma autocrítica sobre esses erros do passado?
Assim como todos os outros partidos, o PT não passou por um processo de depuração, de reconhecimento e de correções.
O partido evitou fazer isso porque estava na oposição e queria voltar ao poder?
Esse mesmo argumento eleitoral já foi trazido em 2018. Nesse ano, falava-se que não era o momento certo de fazer autocrítica porque havia uma campanha em curso, e Bolsonaro poderia vencer. Nada ocorreu depois do pleito. Mas essa não é uma questão só do PT. Nada aconteceu em partido algum. Depois de tudo o que se revelou de financiamento ilícito de campanhas e subornos a políticos, quantos processos foram instaurados pelos comitês de ética dos partidos? Eu só tenho registro de um, do PT, contra Antonio Palocci, justamente o filiado que abriu a boca para fazer denúncias (um processo de expulsão foi iniciado, e Palocci pediu a desfiliação). Então, esse não é um problema exclusivo do PT, mas de todo o sistema político brasileiro. Em vez de reconhecer o problema sistêmico, operou-se para negá-lo e para criar meios para evitar que uma iniciativa como a Lava Jato voltasse a acontecer. O sistema político brasileiro não se moveu um centímetro. Pelo contrário, criou blindagens ainda mais poderosas para não ser ameaçado e institucionalizou a corrupção, acabando também com os intermediários.
Como assim?
No Brasil, o que sempre aconteceu foi que o dinheiro público era canalizado para campanhas políticas. Isso fortalecia uma elite política brasileira que, com esses recursos, distorcia a competição eleitoral. Grandes empresas financiavam as campanhas, de maneira lícita, com doações, ou ilícita, com caixa 2. Mas o dinheiro, no fundo, nunca vinha de fundos privados. As verbas sempre saíam de fundos públicos, porque os empresários recebiam benefícios em créditos subsidiados do BNDES, empréstimo da Caixa ou do Banco do Brasil, anistias fiscais, vantagens regulatórias. As companhias eram apenas um intermediário para que o dinheiro público chegasse às campanhas e aos bolsos da classe política. Esse foi o modelo histórico. Recentemente, tivemos duas mudanças importantes. A primeira foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal que acabou com a doação lícita, de empresas. A segunda foi a Lava Jato, que aumentou o risco do caixa 2, o financiamento ilícito. Então, os dois canais de financiamento foram bloqueados. O que a elite política fez para manter seus privilégios e seguir no poder foi garantir que o dinheiro fosse direto aos seus caixas, sem passar pelos intermediários, que eram as empresas. Isso desembocou no aumento explosivo do financiamento dos partidos e do fundão eleitoral.
O financiamento público necessariamente é algo ruim?
Não seria, se esses recursos fossem distribuídos de maneira transparente, democrática e legal. O que ocorreu foi justamente o contrário, a explosão da oferta de recursos públicos com a redução dos mecanismos de controle, que já eram pífios. Além do mais, não satisfeitos com os fundos partidário e eleitoral bilionários, eles assaltaram o orçamento público federal. É o Orçamento Secreto, o maior sistema de institucionalização da corrupção na história brasileira.
Como o Brasil chegou ao Orçamento Secreto?
Desde a redemocratização, os poderes Executivo e o Legislativo encontraram maneiras de negociação muito pouco republicanas e, muitas vezes, criminosas. Em alguns momentos, isso se deu para garantir o avanço de um programa de governo e uma visão de país. No primeiro governo Lula, isso foi feito com a compra de apoio parlamentar por meio de recursos desviados de estatais. Com a revelação do esquema, os termos das barganhas se alteraram. Quando o governo Lula quase caiu na revelação do mensalão, começou a se operar o petrolão. Em vez de buscar avançar um programa de governo ou uma visão de país, o objetivo passou a ser garantir a própria sobrevivência do governo, brindando impunidade. Isso foi progredindo com sucessivos governos, cada vez mais fracos.
O que aconteceu no governo de Dilma Rousseff e depois?
Para sobreviver às investigações da Lava Jato, ela também teve de ceder poder ao Congresso. Isso não foi feito com um grande esquema de corrupção, como o mensalão, mas com as emendas parlamentares ao Orçamento. Ela deu mais poder aos deputados para determinarem o destino das verbas públicas. Com Michel Temer, logo denunciado por corrupção, o Executivo cedeu ainda mais ao Legislativo, possibilitando que as emendas fossem impositivas. Bolsonaro também assumiu em 2019 com montanhas de acusações de corrupção envolvendo sua família ao longo de décadas, nos esquemas de rachadinha e lavagem de dinheiro. Ele precisou entregar ainda mais poder ao Congresso. A principal função do Orçamento Secreto foi a de garantir que os mais de 140 pedidos de impeachment continuassem dormindo na gaveta do Arthur Lira.
Por que o Orçamento Secreto é tão nocivo?
Porque esse esquema perverteu a lógica da alocação de recursos para políticas públicas. Antes, a verba para um programa do Ministério da Saúde para o tratamento do câncer em todo o país, por exemplo, era determinada por técnicos com seus próprios critérios. No Orçamento Secreto, o recurso sai da área da saúde, mas é direcionado para atender aos objetivos paroquiais e eleitoreiros dos parlamentares. O dinheiro, então, pode ser gasto na compra de ambulâncias ou na construção de postos de saúde em localidades onde não há necessidade. Além disso, ocorre uma pulverização da corrupção. Os recursos no Orçamento Secreto são enviados para municípios pobres e pequenos, onde não há qualquer capacidade institucional de controlar esses gastos milionários. É por isso que tivemos casos como o de uma cidade com mais procedimentos de extração de dentes do que habitantes. Outra, no interior do Maranhão, comprou mais exames de HIV do que São Paulo. Por fim, o Orçamento Secreto distorceu a competição eleitoral, porque alguns políticos do Centrão tiveram acesso a recursos milionários, que lhes deram vantagens na disputa com outros candidatos.
Lula vai usar esse mesmo recurso para evitar um impeachment?
O próximo governo não se iniciará com o mesmo grau de fraqueza de Bolsonaro. As acusações de corrupção contra Lula foram anuladas. Ele não terá, portanto, uma espada sobre sua cabeça. Mas o petista chegará para governar um país dividido, com um Congresso em que ele dificilmente terá maioria. Ele precisará se esforçar bastante para conseguir governabilidade e esses recursos, os mais sujos da barganha política, estarão disponíveis para Lula.
Como se poderia acabar com o Orçamento Secreto?
O único ator que pode dar um fim a isso é o Judiciário. Ao Supremo Tribunal Federal, STF, cabe declarar a obscena inconstitucionalidade do Orçamento Secreto. A corte ainda não votou isso no plenário porque estava sob uma ameaça real de um governo autoritário que atacou a credibilidade da instituição. Provavelmente, o STF fez um cálculo para só colocar esse assunto em pauta depois das eleições. A partir de agora, o tribunal poderá ter mais liberdade para tomar uma decisão que desagrada toda a classe política brasileira. Esse é o raciocínio que eu faço. Minha esperança de que o governo Lula não seja dragado para essa mesma situação é que ocorra uma intervenção do Judiciário.
Os políticos não poderiam criar outro mecanismo para se favorecer?
Criatividade para esse tipo de coisa infelizmente não falta na nossa classe política. Então acho que poderá haver algum grau de arrumação. Parece que o senador Rodrigo Pacheco, no melhor estilo mineiro, está tentando contemporizar e botar o Orçamento Secreto em termos menos criminosos.
Esta semana, surgiram notícias de que o Centrão e aliados aceitam negociar mudanças nas ‘emendas de relator’. Como o sr. enxerga isso?
Enxergo com grande preocupação. Já começaram a surgir as mais criativas propostas de “retrofit” do Orçamento Secreto, todas seguindo a máxima do gatopardismo: “reformar para que tudo se mantenha como está”. Com o novo Congresso dominado pelo Centrão anabolizado, o governo do PT jamais terá condições, mesmo que realmente o quisesse, de reverter inteiramente esse padrão imoral de barganha instalado, que é tão benéfico aos interesses dos parlamentares quanto é prejudicial ao interesse público. O que deveria acontecer é uma decisão plenária do Supremo que cumprisse com sua responsabilidade de abolir essa prática obscenamente inconstitucional.
Só nos resta então torcer para o STF declarar o Orçamento Secreto inconstitucional?
Todo país que teve avanço no combate à corrupção, com a aprovação de leis melhores e o fortalecimento de instituições, só conseguiu manter isso ao longo do tempo com a ajuda de uma cidadania consciente e ativa. É isso o que garante a resistência do combate à corrupção e impede os retrocessos. Quando a luta anticorrupção tem quem a defenda, os avanços são duradouros, e não um mero voo de galinha, como o que presenciamos recentemente no Brasil.
Revista Crusoé