A Rússia anexou a Crimeia. A Rússia invadiu um país soberano. A Rússia anexará as repúblicas separatistas que controla. Tudo isto são crimes. Repito. Não há zonas cinzentas. Não há ambiguidade moral.
Por Eugénia de Vasconcellos
Hoje, mais de 14 horas depois do horário previsto, vimos e ouvimos Putin. Após as decisões da Duma, de terça-feira, permitirem a alteração dos requisitos de aptidão dos reservistas, o aumento das penalizações para os desertores e a prisão para quem se renda sem lutar na frente ucraniana – o que não abona em favor do moral das tropas -, foi anunciada a já previsível mobilização militar dos reservistas. Enfim, tudo se torna previsível a posteriori…
A convocação de 300.000 reservistas e o anúncio de que a Rússia «defenderá por todos os meios a integridade do território russo», manifestam a intenção de escalar do conflito, afinal, dentro de poucos dias a Rússia expandirá, por pseudo-referendo, o seu território através da anexação, garantindo, assim, que a Ucrânia, apoiada pela NATO, «atacará a integridade do território russo» e ficará sujeita à resposta que a Rússia entender adequada. Tal como a Crimeia, Kherson é Rússia. Todo o território a ser pseudo-referendado é Rússia. Retomá-lo é o mesmo que atacar Moscovo. «Não é um bluff».
Entretanto, na Rússia, a «operação especial» saltou dos ecrãs directamente para o colo daqueles que a assistiam no conforto do sofá enquanto se transformava numa convocatória mortal para a guerra. Fala-se de mobilização parcial de 300.000 reservistas, mas, na verdade, não se sabe nem sequer o número real de mobilizados pelas quotas estabelecidas para cada região. Corresponderá a 1%, ou pouco mais, do número disponível de militares, diz-se.
Um casal amigo vive em Moscovo com a restante família. Hoje, ele, por ter uma doença crónica grave, esteve horas, quase todo o dia, numa fila para ver avaliada a sua aptidão física para o serviço militar por uma comissão médica. São pessoas que não apoiam o regime de Putin, porém nunca pensaram deixar a Rússia. Querem ficar no país que amam, onde trabalham, onde tiveram os seus filhos, onde os educam. Não querem ser tidos por putinistas.
Há uma diferença fundamental entre morrer a defender o próprio país, e um ideal de país no qual se acredita, ou morrer a atacar o país de outrem por uma decisão de que se discorda. Os bilhetes de avião multiplicaram o preço por muitos, alguns destinos esgotaram, filas de carros entupiram as fronteiras com a Finlândia e com a Geórgia, organizaram-se manifestações contra a convocatória militar. À hora a que escrevo terão sido presos mais de 500 manifestantes.
A perigosidade de Putin aumenta a cada vitória ucraniana e é inversamente proporcional ao enfraquecimento do seu poder, e à percepção do enfraquecimento do seu poder, do poder dos seus exércitos e da Rússia no palco internacional, como recentemente vimos com os comentários de Narendra Modi e Erdogan. O horror com que nos ameaça fala do desmoronamento desses poderes.
À Ucrânia, a Rússia levou uma campanha de terror onde já morreram milhares de civis. Presos. Torturados. Desaparecidos – foram levadas para a Rússia crianças a quem os pais não voltaram a ver. Milhões de ucranianos foram deslocados com perdas parciais ou totais, dentro do próprio país, por toda a Europa, no mundo. As infra-estruturas têm vindo a ser destruídas. Cidades inteiras arrasadas. Electricidade. Água. Hospitais, prédios de habitação, escolas, estradas. E o Inverno à porta. Massacres, tortura, valas comuns tornaram-se parte da linguagem diária: Bucha, Irpin, Izium.
Há uma crise global. Energética. Alimentar. A inflação escala e a recessão espreita. E não, nada disto se originou na malignidade imperialista dos Estados Unidos e da NATO, da indústria de armamento. É uma consequência da invasão russa da Ucrânia. Não há ambiguidade. Não há zonas cinzentas.
A Rússia anexou a Crimeia. A Rússia invadiu um país soberano. A Rússia vai anexar as repúblicas separatistas que controla. A Rússia vai dizer que foi atacada no seu território quando o tentarem recuperar. Tudo isto são crimes. Repito. Não há zonas cinzentas. Não há ambiguidade moral.
É o que é. Por isso é preciso que a Ucrânia ganhe esta guerra.
Observador (PT)