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sexta-feira, setembro 09, 2022

Compostura trouxe a Elizabeth o respeito coletivo




Viver muito, viver bem e viver com a boca calada, pairando acima das circunstâncias passageiras da política, deram à rainha que se foi um lugar único. 

Por Vilma Gryzinski

Rei Charles e rainha Camilla. Esta é a realidade com a qual terão que se acostumar 67 milhões de britânicos – e todo o resto da humanidade que acompanha a novela da família real, na vida ou na Netflix. Quem diz que não acompanha está sendo flexível com a verdade.

Mais de 80% das pessoas vivas hoje no planeta nasceram depois que Elizabeth II se tornou rainha, com apenas 25 anos, por causa da morte prematura do pai, levado pelo câncer de pulmão.

Reis e rainhas são arquétipos muito entranhados na cultura humana e poucos podem ter correspondido tanto a essa imagem primal, de alguém com virtudes únicas, quanto ela. Isso ajuda a explicar por que tanta gente tinha estima e simpatia pela rainha. Ela ficou entre nós tempo suficiente para se consolidar como um ícone, a imagem da tão única monarquia britânica cujos integrantes, nem sempre brilhantes o suficiente para entender isso, podem ler as peças de Shakespeare sobre reis como parte da história da família.

Ao contrário de sua xará e antecessora, Elizabeth I que começou a reinar quando o Brasil tinha apenas 33 anos de descobrimento, a rainha que se foi não tinha poder nenhum, exceto pela aura imaterial da tradição herdada e do respeito conquistado.

Mas em seu nome a nação inteira cantava God Save the Queen – um hino que glorifica o monarca, não o país -, o Exército, a Marinha e a Força Aérea iam à guerra (poucas vezes nos setenta anos de reinado, uma delas quando outra mulher, Margaret Thatcher, mandou-os retomar as Ilhas Malvinas), os correios entregavam cartas, os governantes – e a oposição também – pediam licença para fazer o que tinham prometido ao eleitorado.

Como nunca prometeu nada, exceto dedicar-se inteiramente à missão para a qual foi ungida, o que fez de maneira exemplar, Elizabeth II nunca caiu no mundo vulgar da política nem sofreu o desgaste natural que ele provoca.

Sofreu em silêncio quando, em nome do corte de gastos, perdeu o Britannia, o iate no qual singrava o mundo num microcosmo perfeitamente isolado e protegido. Um microfone indiscreto numa Garden Party, a recepção ao ar livre, frequentemente chuvosa, em que os reais se misturam com os civis, capturou quando ela mostrou simpatia por uma policial que havia participado do esquema de segurança da visita do líder chinês Xi Jinping. “Eles foram muito rudes”, disse Elizabeth, numa raríssima indiscrição. Como foi extraoficial, todo muito fez que não viu.

Fingir que estava vendo e sorrir da maneira mais neutra possível foi uma técnica aperfeiçoada por Elizabeth ao longo de sete décadas. Presidentes, primeiros-ministros, príncipes árabes, ditadores e outros bichos perigosos, cuja boa vontade interessava ao reino cultivar, eram impecavelmente recebidos. Um biógrafo da rainha contou que ela não tinha surpresa nenhuma, pois absolutamente todos falavam a mesma coisa: as maravilhas que estavam fazendo por seus países.

Elizabeth viveu para receber a décima-quinta pessoa a fazer o “beija-mão”: o chefe, ou a chefe, de governo escolhido pelo partido no poder, ou em eleição popular. Quem manda é o voto, mas pedir a autorização do monarca faz parte do ritual. O primeiro da lista foi Winston Churchill – imaginem só. Reticente em relação a uma monarca tão jovem, o mitológico primeiro-ministro acabou desenvolvendo um laço de amizade – e, dizem, até ficou um pouco caído pela rainha de cinturinha fina e voz de menina. Desenvolveu uma “quase idolatria” por ela, descreveu um observador privilegiado.

Quando Elizabeth comemorou os setenta anos de reinado, um feito sem precedentes, o palácio pediu discretamente que as homenagens não derivassem, justamente, para a idolatria.

Foi difícil. A “nossa rainha”, como tantos britânicos acostumaram-se a dizer com orgulho, já tinha virado ídolo. Inclusive para os fashionistas que babavam com a “roupa de trabalho” que ela consolidou e transformou em marca registada, ou brand, como aprenderam a dizer: um casaco de cor bem vistosa – chegou ao verde neon – para ser vista por todo mundo, chapéu combinando, luvas, mocassim com saltinho feito sob medida por Davide & Agnello e bolsa da marca Launer.

Tudo arrematado por um broche de sua formidável coleção.

A rainha gostava de joias, embora não tivesse pendor para a ostentação (quem tinha era sua mãe, também Elizabeth, que segundo um biógrafo adorava o status real, uma característica de “mulher pobre que casa com homem rico”). Gostou tanto do conjunto de águas marinhas brasileiras encomendado por Assis Chateaubriand que mandou fazer uma tiara com as mesmas pedras.

Uma pesquisa do começo do ano deu que 82% dos britânicos acham que ela cumpriu muito bem ou bastante bem seu papel. Elizabeth viveu muito e bem, não só no sentido do luxo que a cercava, mas do cumprimento de um papel que não escolheu, mas assumiu de corpo e alma.

Agora, é o rei Charles, o filho a quem deu um presente final ao manifestar que a mulher que escolheu, e pela qual trocou, inexplicavelmente para a maioria das pessoas, a princesa Diana, deveria ser chamada de rainha. Sempre foi assim e assim continuará a ser ninguém sabe até quando.

Missão cumprida é como os militares costumavam se despedir de companheiros que partiam desse mundo. É com esse reconhecimento praticamente unânime, até dos antimonarquistas, que se encerraram os 96 anos de uma mulher bastante comum, sem ares de grandeza, que levou uma vida quase incomparavelmente incomum.

Revista Veja

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