Mobilização de reservistas e intimidação nuclear explicitam erros e elevam risco
Logo que chegou ao poder, na virada do ano 2000, um jovem e desconhecido Vladimir Putin publicou uma autobiografia. Em "Primeira Pessoa", ele conta episódios da sua infância na arruinada Leningrado (hoje São Petersburgo), nos anos 1950, e destaca como gostava de atacar os ratos que infestavam os dilapidados prédios locais.
"Eu tive uma lição rápida sobre o sentido da palavra encurralado", escreve, sobre quando cercou um enorme roedor em uma escadaria. "Ele não tinha para onde ir e, de repente, se jogou contra mim. Eu fiquei surpreso e assustado, e agora o rato estava me perseguindo."
Se o menino é o pai do homem, como se diz, é possível ver sombras da anedota na invasão da vizinha Ucrânia promovida pelo russo.
Parte do que explica a agressão é a reação ao que se encara na Rússia como um cerco feito pelo Ocidente ao país após a implosão da União Soviética, em 1991.
Não justifica a guerra, claro, mas ajuda a entendê-la. O mesmo se dá com a cartada de quarta-feira (21).
O russo anunciou uma mobilização parcial de até 300 mil reservistas, para assegurar as fronteiras que pretende redesenhar ao anexar áreas que ocupa no vizinho. Elas serão objeto de fantasiosos referendos a serem completados neste fim de semana, em flagrante violação das leis internacionais.
Mais reveladora foi a assertiva de que a guerra é contra o Ocidente, que usaria a Ucrânia como um fantoche —e a anexação significa que, no limite, armas nucleares poderão ser usadas para defender as novas terras russas.
Trata-se do conceito do rato encurralado em pleno uso. Putin não parece estar perto da derrota militar final ou de um golpe, mas vive sob pressão devido a seus erros.
Sua escolha de empregar força insuficiente, a fim de manter a popularidade, impediu a vitória em fevereiro e, agora, resulta na perda de áreas conquistadas no nordeste ucraniano. Pior, ameaça seu maior prêmio, o leste russófono.
A mobilização visa estancar esse movimento e, talvez, criar condições objetivas para o fim do conflito. Para ficar nas memórias infantis, o roedor só parou quando Putin fechou a porta de casa.
Tudo indica que, ao mencionar o maior arsenal atômico do mundo, o autocrata russo está fazendo o que nega —blefando. O problema que se coloca é se ele domina mesmo os limites de seu jogo.
Central no processo é o endosso, ainda que algo dissimulado, da China. Recém-saído de uma reunião com Putin, Xi Jinping sabe que boa parte do apoio dos EUA a Kiev diz respeito à contenda com Pequim. O que se pode dizer por ora é que os riscos da guerra aumentaram.
Folha de São Paulo