Por Carlos Andreazza (foto)
Acompanhei com perplexidade, minha perplexidade derivando da simples observação do mundo real combinada a algo de memória, o noticiário segundo o qual o Senado se mobilizaria para resistir ao galope autocrático de Bolsonaro e defender — a partir da ode ao sistema eleitoral — o Supremo.
Uau!
Haveria mesmo uma consciência institucional do Senado como última fronteira parlamentar antes do golpe — consciência até aqui expressa em notas de jornal e em tuítes do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco.
E de repente me lembrei de o jurista Pacheco costurando para, em desprezo a um comando constitucional óbvio, não instaurar a CPI, direito da minoria, que investigaria a barbárie em que consistiu a atividade do governo durante a peste.
Já teremos nos esquecido?
Do senador Randolfe Rodrigues, li que a Câmara estaria capturada pelo bolsonarismo. O juízo é correto. A Câmara aderiu — capturar não será o verbo correto — desde que a sociedade entre Planalto e o consórcio comandado por Arthur Lira fundou bases na gestão obscura e arbitrária do Orçamento.
A questão — motivo da minha perplexidade — é o Senado como espaço de resistência. Nada contra palavras em resposta aos arreganhos golpistas de Bolsonaro. Tudo a favor de um olhar direto às práticas. A realidade, com sua gritante objetividade, está aí.
Se considera majoritariamente o presidente da República nocivo à saúde democrática do país, o que o Senado fez-faz, dentro das quatro linhas da Constituição, para limitá-lo, notinhas de repúdio à margem?
Quais seriam os instrumentos políticos disponíveis ao resistente Senado para frear o ímpeto bolsonarista pela fratura?
Augusto Aras é o entrave maior — o próprio bloqueio —à prosperidade de denúncias contra Bolsonaro. Como votou Renan Calheiros, tão ativo na CPI da Covid, quando da análise, pelo Senado, da proposta de recondução de Aras à PGR? Mais amplamente, como votou o Senado? Como, os valentes da comissão? O mandato de Aras foi renovado; o que equivaleu a o Senado jogar no lixo, para desdobramentos formais relativamente a Bolsonaro, o tanto que coletara na CPI sobre os crimes do governo durante a pandemia.
Há três anos e quatro meses ouve-se Bolsonaro afirmar — sem nenhum disfarce —que pretende povoar o STF de bolsonaros. Tendo o poder de rejeitar os kássios, o que fez o Senado, senão aprovar os pretensos braços do presidente? O processo até o aval a André Mendonça se arrastou apenas para que Davi Alcolumbre pudesse chorar os orçamentos secretos perdidos ao deixar a presidência do Congresso.
O Senado resistente é o que se concerta para garantir seus modos. Negocia-se.
Qual a diferença, verniz juscelino à parte, entre Alcolumbre e Pacheco, herdeiro da gestão das emendas do relator cuja perda pranteou Davi? São conhecidos os dados segundo os quais o fluxo de granas sai do Amapá para dar a Minas o protagonismo no desaguar de codevasfs. Já escrevi a respeito.
Qual a credibilidade do presidente do Senado para defender a Justiça Eleitoral brasileira — a transparência do sistema eleitoral — e a importância do equilíbrio entre Poderes, se é um dos cabeças do mais acintoso desrespeito a decisão do Supremo ora em curso? Ou terá Pacheco tornado pública — cumprindo já velha ordem do STF — a lista dos parlamentares padrinhos, ele inclusive, de dinheiros destinados arbitrariamente via orçamento secreto?
Ao liderar — contra o princípio constitucional da transparência na administração pública — o desrespeito a uma determinação do Supremo, Pacheco enfraquece muito ou muitíssimo o Poder sob ataque bolsonarista?
Até que ponto será possível a um operador de disfunções — de perversões —orçamentárias defender o vigor institucional do STF, sendo um Supremo forte também, infelizmente, aquele tribunal que se excede e avança sobre matéria exclusiva do Legislativo para cassar parlamentares?
Supremo fraco é orçamento secreto forte. Supremo forte é o que se outorga o condão de cassar deputados e senadores. Que tal o Supremo normal, dedicado ao controle de constitucionalidade? Não será Pacheco a propor, muito menos conduzir, o resgate republicano urgente, o de radicalização impessoal pelo que dispõe a Constituição —o que secaria Bolsonaro. A bagunça conflitiva, a imprevisibilidade que empossa oportunistas e multiplica tiranetes, tem seu valor.
Há um contrato entre governo militar e, mais explicitamente, a Câmara de Lira, mas não somente. Contrato, com vista às eleições, também para blindagem do golpista Jair, firmado na gestão pirata do Orçamento —hoje nas mãos do ministro Ciro Nogueira, um senador. E Pacheco quer continuar presidente do Senado em 23.
Qual seu interesse em confrontar, de verdade, o governo do golpista, se isso seria confrontar o arranjo que lhe dá a cota alcolúmbrica do Orçamento? Ele não quer ser ex-alcolumbre. Não tão cedo. Negocia-se. Bolsonaro joga em casa.
O Globo