A batalha da paz já está perdida; não existe saída negociada com forças que chegam a atacar usina nuclear, colocando Europa inteira em risco.
Por Vilma Gryzinski
Não é preciso ser especialista em estratégia militar para ver o que as forças armadas russas estão fazendo: criando um cordão que vai do sul ao oeste do território fronteiriço da Ucrânia e, a partir daí preparando o avanço que irá engolindo as principais cidades até chegar a Kiev.
O Plano A era a decapitação, a tática de desfechar um ataque tão superior que a cúpula do governo seria derrubada por dentro, para evitar a destruição total do país e instalar uma liderança mais flexível às exigências do invasor.
Deu formidavelmente errado. Em vez de derrubar o governo, os russos criaram um herói na pessoa de Volodimir Zelenski e uniram o mundo civilizado de uma forma que nenhum de nós testemunhou em nossas vidas.
Os generais russos voltaram então para o Plano B, o que eles sabem fazer melhor e estão mais equipados: o arrasa-quarteirão ou destruição em massa de cidades, até não restar sombra de resistência.
O ataque ao redor da usina nuclear de Zaporizhzhia mostrou que nenhuma consideração por riscos absurdos segura os invasores. Na dinâmica da guerra, tradicionalmente acontecem desdobramentos não planejados, mas a perspectiva de que a Europa inteira poderia estar sob uma nuvem radiativa nesse momento dá uma dimensão sem precedentes da mentalidade dos atacantes,
A queda da cidade de Kherson ilustrou a eficácia brutal dos russos, que têm o domínio do espaço aéreo e a superioridade em material bélico.
“Não temos mais forças armadas ucranianas na cidade, só civis e pessoas que querem viver”, postou o prefeito Igor Kolikhaiev, contando que “visitantes armados” impuseram suas condições numa reunião na prefeitura e ele não teve alternativa a não ser aceitar.
É só olhar os mapas da Ucrânia que estão em todas as telas e ver os próximos alvos, que já estão sendo “amaciados” com bombardeios esporádicos, como acontece em Kiev.
As bombas que antecipam a destruição em massa que ainda virá pela frente criaram cenas arrepiantes. Num abrigo improvisado, entre as bandeiras da Ucrânia e de Israel, sobreviventes idosas do genocídio na II Guerra Mundial mandaram mensagens para Putin.
“Eu vivi debaixo de bombas em Kiev em 1941. Em 2022, estou em Kiev debaixo de bombas de novo”, disse Valentina Isoifovna.
“Dessa vez, estou com medo. Putin, quero que você morra”, amaldiçoou outra idosa judia, Tamara Alexeieva.
Kiev é uma das cidades que viveu um dos maiores massacres de judeus durante a II Guerra. Em Babi Yar, uma área de barrancos, forças especiais nazistas fuzilaram 33 mil judeus em apenas dois dias fatídicos, 29 e 30 de setembro de 1941.
As camadas de mortos foram posteriormente se sobrepondo: prisioneiros soviéticos, ciganos, integrantes da resistência ucraniana e, por fim, ucranianos que colaboraram e participaram dos massacres inomináveis.
Na quarta-feira, a bomba que explodiu a torre de televisão de Kiev atingiu áreas anexas ao monumento aos mortos de Babi Yar.
Num post em hebraico, Zelenski fez um pedido dramático: “Eu apelo a todos os judeus do mundo. Vocês não veem o que está acontecendo? É muito importante que milhões de judeus ao redor do mundo não fiquem em silêncio nesse momento”.
“O nazismo nasce no silêncio”.
Zelenski, que é judeu não praticante, já tinha se referido ao horror da II Guerra quando postou um apelo aos russos.
Falando em russo, que é sua língua materna, como a de 10 milhões de ucranianos, ele disse que a propaganda russa estava qualificando o governo de Kiev de nazista, uma blasfêmia evocada ontem de novo por Putin.
Em vez de apontar o absurdo que seria chamar um judeu como ele de nazista, Zelenski apelou, habilmente, para uma experiência com a qual os russos se identificam mais: “Digam isso para meu avô, que combateu a guerra inteira no Exército Vermelho”.
A identidade judia de Zelenski provoca uma complicação adicional para Israel. O primeiro-ministro Naftali Bennett procura deliberadamente manter distância das críticas mundiais à Rússia.
O país sempre cultivou boas relações com Putin e tem um interesse extra: precisa coordenar com a Rússia os ataques regulares que faz contra posições iranianas e do Hezbollah na Síria. Os russos controlam o espaço aéreo sírio e, sem a coordenação, poderia acontecer um incidente grave.
Zelenski fez uma crítica cortante a essa posição ambígua.
“Vi uma bela foto de judeus envoltos na bandeira ucraniana rezando no Muro das Lamentações. Agradeço pelas preces. Mas é na hora do perigo que as coisas são postas à prova. Eu não achei que o primeiro-ministro de Israel estivesse envolto na nossa bandeira”.
“As coisas estão ruins agora, mas é importante entender que se os líderes mundiais não agirem rapidamente, vão ficar muito piores”, disse Bennett ontem. “Estou falando em perda incalculável de vidas, na destruição total da Ucrânia. Milhões de refugiados”.
Bennett não disse especificamente o que mais os líderes mundiais poderiam fazer. O presidente Emmanuel Macron, um dos últimos a manter uma linha de contato com Putin, relatou o resultado de sua última conversa com ele.
Putin informou que vai manter “a luta sem compromissos contra militantes de grupos nacionalistas armados”.
Todo mundo já tinha percebido que parece não existir alternativa negociada que freie o ataque russo, mas ouvir tão claramente que os ucranianos estão condenados à destruição em massa causa uma terrível sensação de impotência diante de um horror que não conseguimos evitar.
“O fim do mundo chegou”, disse Zelenski, que crescentemente só tem as palavras como instrumento de reação.
As dele são incrivelmente poderosas e inspiradoras. Mas pouco podem fazer diante da força avassaladora desfechada por Putin com a missão de “ir até o fim”.
Revista Veja