Ali habitam profissionais, herdeiros e representantes de segmentos sociais, mas seu objetivo não é o bem do país
Por Ascânio Seleme (foto)
É gigantesca a distância que separa o centro democrático do malcheiroso Centrão. O centro não reúne apenas santos, mas em grande parte é formado por políticos que prezam o Brasil. Muitos são profissionais, vivem disso, o que não é crime, outros são herdeiros políticos de pais, tios e avós ou representantes de setores da sociedade. Entre estes há muitos com genuíno interesse em trabalhar para melhorar a vida dos brasileiros. No Centrão ninguém é santo. Também ali habitam profissionais, herdeiros e representantes de segmentos sociais, mas seu objetivo não é o bem do país. Nunca foi.
O Centrão é corrupto. Nasceu corrupto e permaneceu assim ao longo de mais de três décadas, servindo (e servindo-se de) todos os governos, com mais ou menos intensidade, mas sempre em troca de poder ou dinheiro público. Poder, aliás, para facilitar o caminho ao dinheiro público. Ou alguém acha que Ciro Nogueira e Valdemar Costa Neto querem ministérios, como Severino Cavalcanti queria a “diretoria que fura poço” da Petrobras, para melhorar o Brasil? O Centrão não controla necessariamente partidos, embora tenha em seus quadros líderes de siglas. O grupo não pune parlamentares que não seguem suas orientações, apenas corta suas mesadas ou o acesso ao cofre coletivo.
Na sua gênese, o Centrão atuou em favor do governo Sarney. Na Constituinte de 1987 e 1988, liderou o bloco que trabalhou em favor de um mandato de cinco anos para o presidente. Depois operou para Collor, FH, Lula, Dilma e Temer. Tentou sem sucesso barrar o impeachment de Collor. Na gestão de FH foi a favor da reforma constitucional que instituiu a reeleição. Com Lula, locupletou-se no mensalão. Liderado por Eduardo Cunha, traiu Dilma e trabalhou pelo seu afastamento. De Temer foi aliado desde a primeira hora e refestelou-se na Esplanada dos Ministérios.
O auge do empoderamento do Centrão ocorre agora, no governo hediondo de Jair Bolsonaro, no qual escalou até o posto mais alto, a Casa Civil. O agrupamento acha que emparedou o presidente porque nunca ouve um não ao seu apetite fisiológico. Claro, ele usa o Centrão para evitar que se encaminhe qualquer pedido de impeachment pelos mais de 30 crimes de responsabilidade que cometeu, para garantir alianças eleitorais na tentativa de se reeleger e, em última instância, para dar um golpe no caso de derrota eleitoral.
Além da firme aliança com o Executivo, o Centrão ocupa a presidência da Câmara. O orçamento secreto que repartiu R$ 16 bilhões (duas vezes e meia o que foi ressarcido à Petrobras pela Lava-Jato) dá a dimensão do seu poder. Por cargos, vantagens e dinheiro público, apoia qualquer um, até mesmo um chefe de milícia. Desavergonhados, os comandantes do Centrão operam à luz do dia desde que foram incorporados pelo bolsonarismo.
Você pode dizer tudo bem, o Centrão sempre foi assim. Ninguém discorda. Nem o general Heleno. Lembram dele cantando “Se gritar pega Centrão…”? O fato é que o Centrão abusado do passado virou escrachado agora. Nas gestões que se sucederam até desembarcar no governo Bolsonaro, apoiou tudo, menos arroubos antidemocráticos. Lula, por exemplo, não teve o seu aval quando Franklin Martins tentou instituir a censura à imprensa através do projeto que apelidou de controle externo da mídia.
Fechar os olhos para os atos criminosos do presidente porque nunca recebeu tantas bênçãos do Planalto ultrapassa todos os limites. Esta semana, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco reagiram aos novos ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas. Mas ainda é pouco. Se ele tentar um golpe, a culpa não será só dos militares. Estes, apenas com o presidente, sem a leniência do Congresso, nada fariam. Não teriam coragem. Talvez ainda não tenham, mas a benevolência do Centrão lhes dá força. Se fosse somente com os parlamentares de extrema direita eleitos em 2018, como Daniel Silveira, Bia Kicis e o resto da tropa, tampouco se atentaria contra a democracia. Se a tragédia se der, a culpa será do Centrão.
Errar e seguir errando
O Brasil jamais deveria ter perdoado Jair Bolsonaro depois da tentativa de golpe do 7 de setembro do ano passado. O presidente chamou o ministro Alexandre de Moraes de canalha, disse que não respeitaria mais suas decisões e incitou a massa a invadir o Supremo Tribunal Federal. Não há crime mais explícito contra a Constituição e o estado de direito do que aquele. Depois, com a intervenção do ex-presidente Michel Temer e o pedido de desculpas esfarrapadas de Bolsonaro, as instituições esqueceram a agressão. Não cumpriram o seu papel. Agora, Bolsonaro diz outra vez que não respeitará decisão do STF no caso do marco temporal sobre as terras indígenas e pisoteia o tribunal ao indultar o deputado Daniel Silveira. O caldo pode engrossar ainda mais amanhã, nos atos que convocou para o 1º de maio. E daí? Daí, nada. Ele vai ser perdoado outra vez.
Esfarrapado
Ontem, Bolsonaro disse que não quis “peitar” o Supremo ao conceder indulto ao deputado condenado. Disse que houve um excesso e que ele apenas “corrigiu uma injustiça”. Ora, quem é ele para “corrigir” a última instância da Justiça brasileira? Trata-se de um arremedo de explicação do ato desgraçado.
Lugar de militar
Capitão, deixe que o TSE e os partidos políticos cuidam das eleições. Lugar de militar é no quartel. Isso aqui é uma democracia. Milico só se ocupa do sistema eleitoral na ditadura. Ou o elimina. Primeiro dê o golpe, depois coloque os generais para vigiar urnas e contar votos. A ideia é tão ridícula que, veja você, até o Arthur Lira se insurgiu contra.
Pacto de silêncio
Jornalista gosta quando as pessoas falam, sobretudo se elas são autoridades públicas que têm responsabilidades perante o Brasil e os brasileiros. No caso do Executivo, os servidores são obrigados por lei a dar publicidade aos seus atos. Nada deve ser secreto na administração pública. No Legislativo, o quadro é igual. Os homens e as mulheres que representam os cidadãos nacionais devem satisfação de cada um dos seus movimentos. No Judiciário é diferente, juiz não deve falar, a menos que seja nos autos. Esta deveria ser a regra para cada um dos Poderes, mas no Brasil a cantiga é outra. No Planalto, decreta-se sigilo de cem anos até para atos corriqueiros, o presidente fala o que quer e responde apenas às perguntas que acha convenientes. No Congresso, deputados e senadores fazem votações secretas e empenham orçamento público secretamente. Enquanto isso, no Supremo, ministros falam pelos cotovelos. Por isso soou estranho o pacto de silêncio que decretaram sobre o caso Daniel Silveira.
Racismo
O torcedor argentino racista que simulou um macaco para atacar a torcida brasileira adversária foi solto com pagamento de fiança. Pode? Sim. A lei brasileira sobre a questão, embora moderna e importante, tem brechas para que o crime inafiançável seja flexibilizado e o criminoso possa responder em liberdade. Trata-se do eufemismo que atende pelo nome de injúria racial. Pela lei, injúria é um gesto, racismo é um ato. O que se viu na Arena Corinthians, as imagens são evidentes, foi uma agressão racista. A autoridade policial usa este eufemismo para não se aborrecer e acabar logo com a querela. O criminoso foi embora zombando da lei e da Justiça brasileiras depois que o consulado argentino pagou a fiança. Aposto que ele jamais voltará para responder ao inquérito aberto e não pagará sua dívida com o condescendente serviço consular. Na semana, houve outros três episódios de racismo de torcedores argentinos, chilenos e equatorianos. E no Brasil? É a mesma coisa. Em alguns casos, pior.
Homofobia
Uma lanchonete que atende aos diplomatas no anexo do Itamaraty, em Brasília, recebeu há muitos anos o apelido pejorativo de “bichonete”. Não se trata de nenhuma referência a pets, mas uma ofensa homofóbica. O apelido está quase oficializado, apesar do constrangimento que causa nos servidores do Ministério das Relações Exteriores. Tanto que agora já aparece como referência no Google Maps, no FourSquare e até em guias de restaurantes de Brasília.
Mamãe cuida
O ex-secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul, deputado Covatti Filho (Progressistas), desincompatibilizou-se em abril para poder candidatar-se a um novo mandato de deputado federal. O engraçado é que ele deixou o cargo mas o cargo não o abandonou. Ficou com sua mãe, dona Silvana Covatti, com o aval do ex-governador Eduardo Leite. Não podia ser mais descarado. No período que ocupou a cadeira parlamentar, antes de assumir a secretaria, votou 95% com o governo Bolsonaro. De volta a Brasília, o ruralista vai agora presidir a Comissão de Meio Ambiente da Câmara. Pode?
Exu neles
Os pastores evangélicos que vendem apoio a Jair Bolsonaro, os que dizem temer a Deus e sustentam um apologista da tortura, os que fazem lobby em troca de ouro, os que vendem vacinas e os que dão tiro em aeroporto deveriam ter visto o desfile da Grande Rio. Não viram. Se viram, não entenderam. O povo é soberano quando suas crenças religiosas são genuínas, quando sua fé é honesta.
O Globo