Publicado em 24 de setembro de 2022 por Tribuna da Internet
Carlos Pereira
Estadão
Escrevo de Montreal, Canadá, onde participo da conferência da American Political Science Association (APSA), o maior evento de ciência política que reúne analistas políticos de diversos cantos do mundo. Um tema que dominou as discussões na APSA (pelo menos 74 painéis) foi o risco de retrocesso que a democracia mundial supostamente vem passando desde o final da Guerra Fria.
A ciência política está, de fato, muito temerosa com o retrocesso político, chamado de “democratic backsliding”.
HÁ MOTIVOS – Essa apreensão parece não ser destituída de razão. De acordo com o relatório do Variety of Democracy (V-Dem) de 2022, o nível de democracia global médio declinou a valores anteriores a 1989. O número de democracias liberais caiu de 42 para 34. As autocracias aumentaram de 25 para 30.
Autocracias eleitorais passaram a ser o tipo de regime mais comum no mundo – 60 países. O V-Dem chama essa tendência de “terceira onda de autocratização”.
Existe um grande consenso nos trabalhos apresentados na APSA acerca dos principais determinantes e do roteiro dessa nova onda de retrocessos. O fator chave é a eleição de um presidente populista extremo, seja de esquerda ou de direita, com uma agenda de deslegitimação dos políticos e partidos tradicionais por meio de conexões diretas com os eleitores.
TUDO PELO PODER – Uma vez no poder, buscariam reformas constitucionais que fortaleçam ainda mais seus poderes unilaterais como forma de se perpetuar na presidência. Também faz parte desse roteiro autocrático o enfraquecimento das organizações de controle, especialmente o Judiciário, e o controle da mídia, comprometendo assim o perfil liberal da democracia.
Esses foram os casos, por exemplo, de alguns países na América do Sul como a Venezuela, com Hugo Chávez; a Bolívia, com Evo Morales; e o Equador, com Rafael Correa.
Embora esses presidentes tenham seguido estratégias iliberais semelhantes, os resultados de fragilização democrática foram bem distintos. Apenas a Venezuela chegou, de fato, a uma quebra de sua democracia.
UNS E OUTROS – Por que alguns países conseguem resistir a tentativas de autocratização enquanto outros não?
As respostas que a ciência política tem oferecido a essa pergunta não são, entretanto, consensuais nem definitivas. A maioria das análises peca por atribuir importância exagerada às agressões e abusos do populista eleito, como se a sociedade e as instituições fossem vítimas indefesas e incapazes de resistir e oferecer respostas adequadas.
Além disso, os analistas não registram se a democracia faz parte do conjunto de crenças dominantes de cada sociedade em crise autoritária.