A chance desperdiçada de constitucionalizar direitos sociais é lição para a esquerda do Brasil
Por Demétrio Magnoli (foto)
Gabriel Boric, o jovem presidente chileno, sabe o significado da palavra democracia. Diante da derrota avassaladora da proposta de nova Constituição, falou em "autocrítica", pedindo "mais diálogo" para formular uma Constituição "que nos interprete a todos".
A Constituinte eleita na esteira das mobilizações populares tinha maioria da nova esquerda pós-moderna, que escolheu o caminho de produzir uma Constituição igual a si mesma. O texto foi rejeitado por 62% dos eleitores. Nem o apoio condicional da centro-esquerda (PS) e de parte do centro (DC) evitou o fracasso humilhante.
Constituições democráticas são contratos de princípios, que estabelecem as regras do jogo. Os constituintes chilenos escreveram uma Constituição programática, que pretendia determinar os resultados do jogo. O texto repelido fazia do programa de uma facção a lei do país. Por essa via, tentava congelar a política: os programas das outras facções se tornariam inconstitucionais.
"Pinochet renasceu", disse Gustavo Petro, presidente colombiano de esquerda, diante da decisão plebiscitária dos chilenos. Ele parece incapaz de aprender o que Boric entendeu. A primeira mensagem chilena é anti-autoritária: uma maioria circunstancial não deve se confundir com a nação inteira. Os outros —os que pensam diferente de mim— não são "inimigos do povo".
As manifestações que geraram a Constituinte pediam direitos universais (saúde, educação) e uma rede adequada de proteção social. Os constituintes responderam vendendo a quimera de instaurar uma Suécia em esteroides anabolizantes na América Latina. Mas, sobretudo, redigiram a primeira Constituição ancorada em políticas identitárias no mundo democrático: os povos originais e as mulheres foram alçados à condição de protagonistas exclusivos da vida pública.
No salão da Constituinte tremulavam as bandeiras de todos os povos indígenas, mas não a nacional. O texto final declara o Chile um "Estado plurinacional", proclamando o "autogoverno" dos povos indígenas e seu direito a "instituições jurisdicionais tradicionais". Só parece democracia: os indígenas chilenos ficariam submetidos a leis e tribunais criados por autoridades tradicionais. A nação única, disseram os eleitores, não precisa implicar opressão. Pelo contrário: é a garantia de direitos iguais de cidadania.
A pauta de gênero atravessa, obsessivamente, a Constituição derrotada. Mas, para surpresa dos constituintes, uma aplastante maioria de mulheres votou contra o texto ideológico.
De um lado, qualquer decisão judicial deveria subordinar-se a um subjetivo "enfoque de gênero", numa óbvia ruptura com o princípio da igualdade perante a lei. Todos os atos administrativos também deveriam conformar-se ao tal "enfoque de gênero", o que propiciaria a contestação perene das iniciativas cotidianas das autoridades eleitas.
De outro, uma regra de "paridade de gênero" teria que ser seguida na composição de todos os órgãos representativos, violando o direito popular de livre escolha dos representantes políticos. (Aqui no Brasil, os cavaleiros identitários nutrem o projeto de implantar tanto a "paridade de gênero", quanto cotas raciais nos órgãos eletivos).
Levada às suas consequências extremas, a política identitária é um assalto contra a democracia representativa e a igualdade jurídica dos cidadãos. A segunda mensagem chilena é anti-ideológica: a lei não pode ser entregue numa bandeja de prata a organizações de ativistas que se exibem como porta-vozes de identidades oprimidas.
No Chile, a esquerda desperdiçou a oportunidade histórica de constitucionalizar direitos sociais e econômicos, concluindo o ciclo aberto pelos protestos de massas. No lugar disso, ofereceu à direita a chance de enrolar-se nas bandeiras da unidade nacional e dos direitos de cidadania. É uma lição útil para a esquerda brasileira.
Folha de São Paulo