Por José Nêumanne (foto)
Goulart não foi derrubado há 58 anos por militares brasileiros para evitar uma república sindicalista, mas por intervenção militar dos EUA para atender a interesses econômicos de suas grandes empresas
Há 58 anos, perduram várias dúvidas sobre o pronunciamento militar que deu início à mais longeva interrupção da democracia no continente americano. A mais antiga delas atribui a data em que é festejado pela direita e pelos militares como sendo o da efeméride: 31 de março. Mas uma mistura de dúvida e anedota atribuiu o início da derrubada do presidente democraticamente empossado, João Belchior Marques Goulart ao dia seguinte, 1.º de abril, data consagrada nacionalmente de forma jocosa á mentira, Na madrugada desse dia as tropas sob o comando do general Mourão Filho, que a si mesmo chamava de “vaca fardada”, avançaram rumo ao Rio de Janeiro para evitar reações de outros milicos ao golpe, caso do célebre almirante Aragão, contra quem o então governador da Guanabara, o golpista Carlos Frederico Werneck de Lacerda, se armou para resistir ais fuzileiros navais sob seu comando, enquartelado no palácio.
A efeméride, contudo, não tem importância nenhuma, pois o certo é que, mesmo tendo sido considerada extinta com a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney pelo Colégio Eleitoral, que instituiu a chamada Nova República para lhe decretar o fim, que, pelo menos nos quartéis, até hoje não se consumou. Durante meio século e mais oito anos, o comando geral do Exército e seus subordinados nas casernas divulgaram ordens do dia, ignoradas por todas as autoridades civis governantes, exaltando os valores democráticos como se tivessem restaurado, e não dizimado a democracia vigente desde a Constituição liberal de 1946. Agora, graças à farta documentação disponível no Arquivo da Segurança Nacional, organização não governamental atuante nos EUA, é possível saber que essa enganação absurda, segundo a qual a interrupção da ordem civil foi necessária para garantir a eleição presidencial de 1951, não é coisa nossa. Mas a importação de um pretexto inventado por ianques, entre os quais se destacaram os presidentes John Kennedy e Lyndon Johnson, o diplomata Lincoln Gordon e o general Vernon Walters, agente da CIA, operando na Embaixada. A ação subversiva custou US$ 11 milhões, uma dinheirama à época, conforme o próprio Kennedy, só convencido pelo argumento de Gordon de que muito mais custaria uma campanha eleitoral.
A fímbria do tapete que tem encoberto a narrativa dos fatos foi levantada na primeira vez com a divulgação do teor de uma fita gravada em 31 de março de 1964, na qual, o substituto de Kennedy no Salão Oval da Casa Branca, Johnson, foi informado oficialmente da ida de uma força-tarefa naval das Antilhas para o litoral de Santos na “Operação Brother Sam”. Era composta de um porta-aviões, quatro contratorpedeiros e cruzadores de apoio, além de navios petroleiros. O Brasil siybe disso na reportagem de Marcos Sá Corrêa, publicada no Jornal do Brasil e reproduzida no livro 1964 Visto e Comentado pela Casa Branca, de 1977.
Camilo Tavares teve acesso à degravação da tal fita quando pesquisava sobre 64 na vida de seu pai, Flávio Tavares, que foi trocado pelo embaixador americano, Charles Elbrick. E o que ele descobriu na pesquisa de três alentados volumes alterou o objetivo de sua pesquisa, adiada, por causa de descobertas que estarreceram o cineasta e seu pai, o jornalista e escritor Flávio Tavares.
Com a ajuda do pai, que fez as entrevistas com personagens e especialistas, montou o documentário O dia que durou 21 anos, que estreou nos cinemas brasileiros em 27 de setembro de 2012 e hoje é disponível em streaming na Globoplay (para assinantes) e no YouTube (gratuitamente). O documentário ainda não mereceu de historiadores e repórteres a atenção devida, pois comprova em gravações de própria voz de Kennedy, Johnson e Gordon a evidência cristalina e absoluta de que a chamada revolução gloriosa ou redentora do Exército brasileiro não passou de uma traição asquerosa à Pátria a serviço da maior potência estrangeira, que a financiou, planejou e executou para evitar consequências danosas a grandes empresas ianques como a telefônica ITT e a energética Amforp, cujas filiais no Rio Grande do Sul foram nacionalizadas pelo então governador, Leonel Brizola, cunhado do presidente e prócer antiamericanista no Brasil à época.
Então a esquerda estudantil intuiu o que o documentário revelou ao gritar a plenos pulmões nas passeatas contra a ditadura: “Chega de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Os generais do golpe, que, na verdade, não passou de uma intervenção militar colonialista americana, protagonizaram vexames, como as intimidades que Castello Branco, tido como um homem reto, contava a seu amigo Vernon Walters, dublê de general do exército dos EUA e agente da CIA. Lúcidas observações dos historiadores Carlos Fico, PeterKornbluh, coordenador da Ong Arquivo da Segurança Nacional, e James Green, da Universidade Brown, em Providence, Rhode Island, guiam o espectador pelos caminhos tenebrosos e tortuosos da verdade histórica, que ordens do dia mentirosas não ocultam.
Meu papo com Camilo Tavares no Dois Dedos de Prosa no canal do YouTube, editado no aniversário oficial da ignomínia, ocorre no momento em que o presidente da República, Jair Bolsonaro, eleva o notório torturador dos subterrâneos da ditadura cabocla, financiada por empresários norte-americanos, coronel Brilhante Ustra, ao apanágio da Pátria, que ele diz amar . O que 58 anos de cegueira em relação à verdade fundamental da intervenção americana fantasiada de golpe é um vexame a se acrescentar a escravidão, abolição, Canudos e Contestado, em nome da República. Esta é pior, pois, como lembra Kornbluh, na última fala do filme: “e tudo foi feito em nome da democracia.”
*Jornalista, poeta e escritor
Blog do José Neumanne