Conrado Hübner Mendes
Folha
Há juristas que levam o Direito a sério. Há juristas que levam o poder a sério. E há Gilmar Mendes, que janta (com) todos eles. O último jantar ocorreu na casa da senadora Kátia Abreu, semana passada, na presença de Renan Calheiros e Davi Alcolumbre. Lá Gilmar pôde se inteirar dos planos de reeleição de Davi à presidência do Senado.
Em qualquer circunstância, deveria ser um escândalo, não importa o teor da conversa. Um escândalo similar ao jantar-homenagem, três anos atrás, oferecido por Gilmar a José Serra, mesmo senador a ter seu foro privilegiado concedido por Gilmar faz poucas semanas. Como a libertinagem de ministros do STF fez da ética judicial uma frivolidade, perdemos a capacidade de nos assustar.
NAS MÃOS DE GILMAR – Em Brasília, não há jantar grátis. Está nas mãos de Gilmar tornar Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia reelegíveis à presidência das Casas do Congresso. A qualquer momento pode soltar decisão monocrática dizendo que regras sobre eleição das Casas são assunto exclusivo do Congresso. Um tema “interna corporis”, no jargão.
Só faltou combinar com a Constituição. O artigo 57, §4º, afirma que o mandato de membros das mesas do Congresso é de dois anos, “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. A regra adota a fórmula jurídica mais simples que existe: define um fato objetivo e diz “não pode”.
A senadora Rose de Freitas propôs emenda constitucional para flexibilizar a vedação. A redação ficaria assim: “permitida a recondução para o mesmo cargo para um único período subsequente”.
UM SUPREMO ATALHO – Como a tramitação de uma PEC se sujeita a teste democrático espalhafatoso demais, atinou-se para o atalho Gilmar Mendes. O ministro é relator de uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo PTB.
A ação pede ao STF confirmação de que a regra constitucional disse o que disse e invalide interpretação dos regimentos internos da Câmara e do Senado que distingue recondução dentro da mesma legislatura e recondução entre duas legislaturas. A interpretação força a amizade com a Constituição ao autorizar o segundo tipo de recondução. Mesmo assim, reconhece que reeleição dentro da mesma legislatura está vedada.
Alcolumbre e Maia estão no meio da legislatura. Para que possam ser reeleitos, ou se muda a Constituição, ou se desobedece a Constituição. Nem mesmo as interpretações extravagantes dos regimentos das Casas autorizam tamanha gambiarra. Ou então… STF.
MINISTRO FRAUDULENTO – Ricardo Salles não tem mestrado na Universidade Yale, como divulgou (fraude inofensiva se comparada à sua política de desinformação ambiental). Mas Salles foi capaz de formular a mais antológica síntese da praxe publicista brasileira:
“Tem um monte de coisa que é só parecer, caneta, parecer, caneta. Sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana”. Yale ficou pequena para sua clarividência.
Gilmar tem a caneta. Os pareceres da AGU e da PGR já chegaram. Ninguém irá em cana. Segundo a AGU, como o STF autorizou Maia a concorrer à eleição depois de ter cumprido mandato-tampão, qualquer outra exceção seria possível. Pura lógica jurídica.
Disse assim a AGU: “Se a Constituição não monopoliza a solução para a controvérsia das reconduções, então há espaço para interpretação; e, na medida em que esse espaço existe, deve ser titularizado pelo Congresso”. Não, não deve. E nunca houve “controvérsia das reconduções”.
AUTONOMIA DO CONGRESSO – O parecer da AGU também afirmou que o STF deve respeitar a autonomia do Congresso e seguir sua jurisprudência sobre questões “interna corporis”.
Um lembrete: essa jurisprudência tem sido traída faz tempo. Não é mais digna do nome, portanto. Foi o próprio Gilmar, em 2013, o autor da mais tresloucada interferência no processo legislativo de que se tem notícia, ao mandar interromper discussão de projeto de lei que restringia criação de partidos.
Outro aviso: mesmo que a jurisprudência de questões “interna corporis” estivesse viva, forte e coerente, ela nunca significou poder de desrespeitar regra explícita da Constituição. Esse salto “interpretativo” libera o Congresso para virar uma Alerj. Piccianis não faltam.