João Gabriel de Lima
Estadão
Em setembro de 2015 Fernando convidou Fernando para ir à ópera. Um Fernando, o Haddad, era prefeito de São Paulo, e gostava de trocar ideias com outro Fernando, o Henrique Cardoso, que havia sido presidente da República. Os dois tinham algo em comum além do nome. Eram intelectuais formados na esquerda movendo-se na selva da política. Em uma das conversas entre ambos, Haddad lembrou que Cardoso gostava de ópera, e o convidou para assistir à Manon Lescaut, de Puccini, no Teatro Municipal.
Ruth e Antonin também gostavam de ir juntos à ópera, no Metropolitan de Nova York. Ruth era Ruth Bader Ginsburg, juíza liberal nomeada por Bill Clinton. Ela defendia a igualdade de gêneros brandindo argumentos da Constituição americana. Antonin era Antonin Scalia, remanescente do conservadorismo com base intelectual dos tempos de Ronald Reagan.
GOSTO PELA ÓPERA – Amicíssimos para além das divergências, a liberal e o conservador se igualavam no brilho jurídico, na ironia – e no gosto pela ópera. O escritor Paulo Nogueira, colaborador do Estadão, lembrou-me que o compositor Derrick Wang homenageou em música a verve e a inteligência dos dois juízes da Suprema Corte americana. A ópera Scalia/Ginsburg estreou em 2015, o mesmo ano em que um Fernando convidou o outro para ir ao Municipal.
Cinco anos se passaram. Em 29 de setembro de 2020, terça-feira passada, o mundo assistiu ao debate entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump e Joe Biden. O republicano interrompia o democrata a todo momento para provocá-lo. Irritado, Biden chamou Trump de “mentiroso”, “palhaço” e “cachorrinho de Putin”. Foi uma briga de rua em live streaming.
O FENÔMENO BOLSONARO– Cinco anos se passaram. Em 2015, o Brasil ainda não vivera seu segundo impeachment. PT e PSDB frequentemente baixavam o nível do debate, mas, diante do que vemos hoje, o termo “polarização” soa exagerado para as rusgas entre os dois partidos forjados na USP.
Em 2015 ninguém levava a sério a candidatura de Jair Bolsonaro – este sim um político polarizador – à Presidência da República. Nos Estados Unidos, em 2015, o termo “fake news” começava a entrar na moda – e Donald Trump igualmente não era levado a sério como postulante à Casa Branca.
Cinco anos se passaram. Recentemente, a deputada conservadora Janaína Paschoal e o parlamentar progressista Marcelo Freixo debateram no YouTube. Ambos foram criticados nas redes sociais, apenas por conversar de forma amigável com quem pensa de maneira diferente.
SEM CONSTRANGIMENTO – Quando me contou sobre sua noite na ópera com Haddad, Fernando Henrique disse que tentou se manter discreto no camarote, para evitar problemas para o então prefeito. Não foi possível. Os jornais farejaram a foto histórica. Fernando Henrique e Fernando Haddad – personagem do minipodcast da semana – posaram sorridentes, sem constrangimento.
Quando o juiz Scalia morreu, em 2016, a juíza Ginsburg fez seu elogio fúnebre. Lembrou uma tirada irônica de Scalia sobre a amizade dos dois: “Eu combato ideias, não pessoas. Ótimas pessoas podem ter péssimas ideias”. Ruth Bader Ginsburg morreu neste ano, recebendo merecidíssimas homenagens – mas também alguns impropérios de trumpistas nas redes sociais.
Cinco anos se passaram entre as duas noites na ópera e a briga de rua em live streaming. É inevitável a sensação de que, em apenas cinco anos, algo se perdeu nas duas maiores democracias das Américas.