Em vez de ressaltar a importância de uma imprensa livre para a democracia, o presidente eleito ameaça cortar anúncios federais em veículos jornalísticos que não se comportarem de “maneira digna” com o governo
Não será Jair Bolsonaro quem vai matar a Folha de S.Paulo . Nem será Jair Bolsonaro quem vai acabar com a imprensa livre, crítica, independente.
Veículos tradicionais de imprensa podem até vir a sucumbir, seja pela disrupção que afeta a indústria, seja pela falta de um novo modelo de negócio. No entanto, o jornalismo produzido com rigor técnico sobreviverá — não importa se em outro modelo ou outro suporte. O jornalismo é o repositório mercurial dos tempos, o alimento da atividade cognitiva, o pão nosso de cada informação.
Richard Nixon tentou matar o Washington Post na época do escândalo Watergate. Nixon renunciou, o Post segue firme.
Cristina Kirchner tentou destruir o grupo Clarín , que publica o principal jornal argentino. Kirchner passou, o Clarín está lá.
Fernando Collor de Mello mandou a Polícia Federal invadir a Folha de S.Paulo e levou diretores da empresa para prestar depoimentos. Collor passou, e a Folha continua, com a mesma criticidade em relação aos governantes.
Luiz Inácio Lula da Silva tentou expulsar do Brasil o correspondente doNew York Times , quando este revelou que diziam por aqui que o então presidente Lula bebia muita cachaça. Lula está preso, o New York Timesseguiu altivo.
Donald Trump passou a atacar o mesmo New York Times ainda nos tempos de sua campanha. O jornal ganhou mais assinantes e continua de pé.
O mesmo fenômeno se repete agora no Brasil. O presidente eleito ameaçou retaliar a Folha , e, como se vê nas redes sociais, o jornal está ganhando mais assinantes desde que a ameaça foi lançada.
Tristes tempos. Bolsonaro vem somar-se a Trump, candidato a campeão dos detratores da imprensa. Ambos, no entanto, não estão sós. O grupo de detentores do mais alto cargo público com ojeriza à imprensa só faz crescer. Tem Recep Tayyip Erdogan na Turquia (com a maior quantidade de jornalistas presos), Rodrigo Duterte nas Filipinas (com insultos e ameaças aos meios de comunicação), Narendra Modi na Índia (ele financia discursos de ódio contra jornalistas nas redes sociais), Milos Zeman na República Tcheca (o presidente deu uma entrevista coletiva com uma falsa metralhadora nas mãos na qual se lia: “Para os jornalistas”), Nicolás Maduro na Venezuela (fechou quase 70 veículos em 2017), Robert Fico na Eslováquia, ex-primeiro-ministro até o começo deste ano (chamava jornalistas de “prostitutas imundas”), e o ex-presidente do Equador Rafael Correa (que criou um órgão, Superintendência da Informação e Comunicação, para vigiar jornalistas).
Menos preocupado em tratar de temas de muito maior interesse público, tais como respeitar a liberdade de imprensa ou tocar um Brasil desamparado e falido, Jair Bolsonaro, que podia se engrandecer falando em nome da união do país, apequenou-se ainda mais na primeira entrevista depois de eleito.
Questionado se, uma vez eleito, vai continuar a defender a liberdade da imprensa e a liberdade do cidadão de escolher o que ele quiser ler, o que ele quiser ver e ouvir, gastou seu tempo para exprimir picuinhas contra o jornal citado por William Bonner na entrevista no Jornal Nacional .
Incomodado sobretudo com a revelação da Folha , na reta final da campanha, da iminência de disparos em massa de mensagens pelo WhatsApp produzidas em seu favor por empresas apoiadoras, ou, antes disso, pela investigação de que pagava funcionária-fantasma na Câmara enquanto deputado federal, ele disparou: “Não quero que (a Folha ) acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal”. Insatisfeito, completou: “Por si só, esse jornal se acabou”.
Se investigar fatos, descobrir irregularidades, checar dados e compartilhar em público é mostrar um comportamento indigno, então acrescente-se esse adjetivo às qualidades da imprensa. Em sã consciência: as verbas de publicidade do governo federal são para beneficiar quem se comporta bem em relação ao governo? Comportar-se bem significa publicar o que o governante da hora acha certo? O governo é para todos ou só para os apaniguados? A democracia não pressupõe o choque dos contrários, a riqueza do contraditório?
Quando se imaginava que aquilo que os apoiadores de Bolsonaro diziam sobre seu líder — que a linguagem rancorosa e preconceituosa seria apenas exagero, que ele diz barbaridades, mas no fundo não pensa assim ou é um doce de pessoa — poderia ser verdade, ele mesmo veio a público para agredir um jornal cujo “crime” tem sido fazer jornalismo.
“Ele (Bolsonaro) não fez ataques, ele fez críticas. Será que a crítica é unilateral? Acho que nós vivemos num regime democrático, se ele se sentiu atacado em algum momento de forma fora de uma linha de normalidade (...) Isso faz parte da democracia, ninguém está atacando ninguém”, correu para defendê-lo seu braço direito, Gustavo Bebianno, falhando na tentativa de explicar a ameaça no estilo “falou mal do pai, ele corta a mesada”.
Quando era para começar a exercer a famosa dignidade do cargo, aconteceu o contrário. Temos aí um presidente que ameaça usar o aparato do Estado para punir quem discorda — há então, por enquanto, 58 milhões de pessoas sob ameaça, aqueles que votaram em Fernando Haddad, em branco ou anularam o voto, sem falar nos 38 milhões que se abstiveram.
Ou seja, não foi a Folha que foi ameaçada, foi toda a imprensa, todo jornalista preocupado em investigar e revelar fatos que possam ser desagradáveis aos governantes, todos os brasileiros que discordam de Bolsonaro. Diz-se que notícia é tudo aquilo que alguém tem o interesse em não ver publicado. Bolsonaro não gostou de se ver exposto como foi. Então, ferro neles.
Jair Bolsonaro, por conta dele mesmo, passará. A imprensa continuará de pé.
*Caio Túlio Costa é jornalista, professor de jornalismo digital, primeiro ombudsman da Folha e CEO da Torabit, startup de monitoramento digital
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