Carlos Chagas�
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A História é plena de surpresas e de ironias. Mais estas do que aquelas, até. Nenhum presidente da República será cópia do antecessor, muito menos a sua negação. Cada um terá características e concepções próprias, moldando com o tempo a sua imagem. Mas semelhanças entre um e outro costumam aflorar desde o começo.
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Qual o perfil de Dilma Rousseff capaz de ser desenhado nestes primeiros dias de seu governo, e com que outro matiz ele mais parece aproximar-se? Dirão os racionais ser muito cedo, prematuro ao extremo evoluir nesse terreno ainda desconhecido. Estão certos, mas, mesmo assim, vale arriscar algumas incursões no presente e no passado, ficando o futuro por conta da providência e do destino.
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Mesmo assim, a tentação é irresistível para as primeiras comparações. Apesar de haver dividido o ministério em quatro segmentos principais, mostrando saber delegar poderes aos superministros encarregados de cada um, Dilma é centralizadora. Quer conhecer todos os detalhes de cada questão colocada diante dela para decidir. De uma espécie de primeiro-ministro, participante de todos os momentos, que é o chefe da Casa Civil, Antônio Palocci. Mas não deixa de ser, ao menos até agora, ministra de todas as pastas, diretora de todos os departamentos e chefe de todas as seções do serviço público.
Sua presença no local das tragédias geradas pela natureza, na serra fluminense, demonstrou suas preocupações tanto com a preservação da vida dos atingidos, como prioridade maior, bem como a reconstrução de suas moradias, a recuperação de bairros, estradas e logradouros públicos, sem esquecer o abastecimento emergencial de gêneros e remédios, mais a mobilização e a ação imediata das estruturas federais, das forças armadas e dos ministérios mais de perto ligados ao enfrentamento da catástrofe.
Mesmo assim, não deixou de cuidar das botas do Pezão, vice-governador do Rio que, pelo tamanho de seus pés, obrigava-se a andar descalço pela lama e os detritos. Impossibilitado de encontrar botas que lhe servissem, no comércio, a presidente prometeu e fez cumprir de imediato dois pares dos pisantes, tamanho cinqüenta, logo encaminhados pela Petrobrás, única empresa a produzir gigantescas botas para seus funcionários. Na primeira reunião do ministério, a presidente mostrou conhecer e estar acompanhando a realidade de cada setor mais até do que muitos dos recém-nomeados ministros.
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Quem, no passado recente, mais deu exemplos dessa atenção desmesurada e agigantada de tudo o que se passava à volta de seu governo? Aqui vem a ironia da História, obviamente sem a emissão de juízos de valor nem julgamentos precipitados: foi o general Ernesto Geisel, responsável pelo período em que a atual presidente da República encontrava-se na prisão, acusada de pegar em armas contra a ditadura militar… Meras coincidências de modelo, jamais de conteúdo político, doutrinário ou ideológico, mas muito parecidas, nestas semanas iniciais de governo.
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Até porque, mesmo em situações profundamente díspares, Geisel dispunha de um chefe da Casa Civil tão formulador de estratégias quanto combatido em seu próprio meio, cultor do trabalho em silêncio, o general Golbery do Couto e Silva. É a imagem que começa a ser formada em torno de Antônio Palocci, jamais um auxiliar capaz de atrair para si os holofotes do poder, assim como Golbery, mas peça fundamental à sombra do chefe.
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Será um exagero, ao menos por enquanto, rotular Dilma Rousseff de um Ernesto Geisel de saias, mas a possibilidade parece em aberto. �
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OUTRAS COMPARAÇÕES�
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Já que nos encontramos no escorregadio plano das comparações, vale ficar na análise dos personagens situados um degrau abaixo dos presidentes da República, muitas vezes na Casa Civil, outras em nichos variados.
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Luis Viana Filho foi o primeiro chefe da Casa Civil do regime militar. Não conhecia o marechal Castello Branco, quando convidado. O primeiro militar-presidente do ciclo buscava um intelectual, um civil em condições de orientar seus discursos e de demonstrar que o militarismo não dominava por completo o poder. Membro da Academia Brasileira de Letras, deputado politicamente ligado ao movimento que derrubou um presidente da República, biógrafo de Rui Barbosa, como depois seria do próprio Castello, o baiano jamais buscou conduzir politicamente o chefe. Contentou-se, quando podia, em evitar arroubos menos democráticos do grupo no comando da nação. Muitas vezes cedeu, mas manteve a lealdade plena.
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Costa e Silva, o segundo marechal-presidente, escolheu o deputado Rondon Pacheco para a Casa Civil, sabendo que não caberia a ele conduzir ou sequer exprimir as diretrizes de governo. Quem mandava, à sombra do velho marechal, era o chefe da Casa Militar, o general Jaime Portella, maliciosamente chamado de “subcomandante do país”. A ele deveu-se o endurecimento do regime, inclusive a decretação do mais abominável dos retrocessos da época, o AI-5.
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Com o general Garrastazu Médici alterou-se o pêndulo em favor da Casa Civil. Pouco dado ao trabalho diário, o presidente delegou a administração e a insipiente ação política o professor Leitão de Abreu, tanto quando a economia ao ministro da Fazenda, Delfim Netto. O dr. Leitão exerceu ponderável parcela de poder, até facilitando ao então presidente da República prenunciar o modelo que, décadas mais tarde, vestiu o Lula de popularidade ainda maior que a de Médici: um viajava e colhia os louros do crescimento econômico, outro trabalhava, mais ou menos como aconteceu com Dilma Rousseff na chefia da Casa Civil.�
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Feito presidente, o general Ernesto Geisel adotou o perfil do Zeus tonitruante que nos referimos acima, nenhuma garantia para o sucesso de seu governo ou para a sua popularidade, mas teve à sua sombra o general Golbery do Couto e Silva, maestro dos instrumentos políticos e administrativos que levava ao presidente dando a impressão de ser a partitura criada e executada exclusivamente por Geisel.
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Golbery continuaria nas funções com o último general-presidente, João Figueiredo, até a explosão das bombas no Riocentro, quando sustentou que as investigações deveriam fluir até o fim, mesmo atropelando os mandantes, possivelmente ministros do governo. Contrariado em sua determinação, depois de ter sido responsável maior pela abertura política, com o fim da censura à imprensa, a anistia e a extinção do bipartidarismo, retirou-se, por ironia substituído pelo mesmo Leitão de Abreu de outros tempos.
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José Hugo Castello Branco, escolhido por Tancredo Neves para tornar-se “o chefe da casa do presidente”, quer dizer, alguém de sua inteira confiança e intimidade, não conseguiu equilibrar-se muito tempo no governo José Sarney. Veio Marco Maciel, na Casa Civil, buscando abraçar todas as atividades políticas e administrativas, a ponto de incomodar o presidente. Nova troca de funções e assumiu Ronaldo Costa Couto, talhado para exercer o poder sem dar a mínima impressão de estar exercendo. Todos os louros iam para Sarney, mas na realidade era Costa Couto que carregava o piano. Claro que Ulysses Guimarães mandava na política partidária.
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A centralização voltou com Fernando Collor, que em vez de chefe da Casa Civil, inovou com a Secretaria Geral da presidência, entregue a um cunhado, diplomata e sem traquejo administrativo nem político. A dissociação do palácio do Planalto com o Congresso gerou o impedimento do presidente, que nem a tardia convocação de Jorge Konder Bornhausen para o centro do poder deu resultado. Fica difícil, antes do líder catarinense, saber quem era a sombra ao lado do gabinete presidencial.
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Com Itamar Franco as coisas foram mais simples. O vice-presidente convocou Henrique Hargreaves, amigo de longa data, que na Casa Civil conseguia conter alguns arroubos do chefe mas, como regra, tocavam de ouvido. Mesmo uma falsa acusação contra Hargreaves recebeu a rígida decisão do presidente, que mandava qualquer auxiliar afastar-se para defender-se. Inocentado como foi o chefe da Casa Civil, voltou com tapete vermelho.
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Do governo Fernando Henrique importa deixar a poeira assentar, mas o papel de Clovis Carvalho na chefia da Casa Civil precisa ser mais explicitado, pela sua importância e, ao mesmo tempo, seu profundo desapego às exteriorizações do poder. O sociólogo fica devendo não um elogio, mas o reconhecimento do papel exercido pelo amigo.
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Chegando ao fim com o Lula, parece ter havido uma volta ao passado. Ele viajou pelo país, pelo exterior, ficou mais popular do que qualquer antecessor, mesmo tendo perdido duas copas do mundo de futebol e não ter acertado nenhum resultado, como Garrastazú Médici, mas quem efetivamente governou foram seus dois chefes da Casa Civil, primeiro José Dirceu, depois Dilma Rousseff. Claro que dava diretrizes, fazia opções que lhe eram levadas e, acima de tudo, alimentava com energia cinética a ação de seus auxiliares.
Aos poucos as peças vão se enquadrando no tabuleiro, mas é muito cedo para a definição do perfil do Lula na História. Quanto mais então o de Dilma, que mal começou. Pode ser uma escorregada monumental compará-la a Ernesto Geisel, mas que a tentação, vale repetir, é grande, isso é. Claro que só na postura, talvez nos objetivos nacionais permanentes, mas jamais na ideologia e na doutrina.
Fonte: Tribuna da Imprensa