Tribunal absolve “cliente ocasional” de sexo com menores de idade e choca defensores dos direitos da infância
Paola Carriel
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu na semana passada que um “cliente ocasional” não comete um crime ao pagar para fazer sexo com crianças e adolescentes. O caso chegou ao STJ depois de o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul rejeitar a acusação contra dois homens que contrataram adolescentes para manter relações sexuais. Na ocasião, a dupla aliciou duas jovens pelo valor de R$ 80.
De acordo com os ministros do STJ, não há crime porque não foram os aliciadores que iniciaram as atividades sexuais das garotas. Especialistas e juristas da área da infância afirmam que a decisão é contrária a toda a legislação existente na área, e que, além de equivocada, é inconstitucional. Para eles, o STJ vai na contramão de tudo o que vem se discutindo sobre direitos humanos nos últimos 30 anos. E o pior: pode abrir precedentes perigosos.
O juiz estadual absolveu os réus porque, de acordo com ele, “as prostitutas esperam o cliente na rua e já não são mais pessoas que gozam de uma boa imagem perante a sociedade”. O magistrado afirma ainda que a “prostituição é uma profissão tão antiga que é considerada no meio social apenas um desregramento moral, mas jamais uma ilegalidade penal”. O STJ manteve este posicionamento e apenas condenou os dois jovens por portarem material pornográfico, já que além do programa, ainda tiraram fotos das meninas nuas.
Para juristas a deliberação é tão equivocada que chega a ser absurda. O artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro ao afirmar que exploração sexual infantil é crime. E não fala sobre a ilicitude do ato ser na primeira, segunda ou terceira vez. Todas são condenadas pela legislação. No artigo 227 da Constituição Federal também está esclarecido que fazer sexo com crianças ou adolescentes mediante pagamento é crime independentemente da frequência.
O procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior, um dos criadores do ECA, afirma que uma modificação no Estatuto foi feita em 2000 justamente para evitar este tipo de equívoco. Na versão original do documento, de 1990, o artigo 244-A não existia. “Mesmo elas já sendo exploradas anteriormente, isto não dá um salvo-conduto para mantê-las nesta condição. A decisão é contrária à doutrina da proteção integral que rege nossa lei na área da infância”.
O Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo quando os assuntos são a infãncia e a adolescência. Além do pioneiro ECA, o país também é signatário de vários outros tratados internacionais sobre o tema, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres.
Vergonha
Para o promotor Murillo Digiácomo, do Centro de Apoio Operacional às Promotorias (Caop) de Infância e Juventude do Ministério Público do Paraná, o caso é uma vergonha para o Brasil no cenário internacional. “É uma situação inqualificável. Qualquer pessoa que entende minimamente de direito da criança, qualquer cidadão fica chocado. Como uma corte de Justiça pode tomar uma atitude dessa, contrária a tudo o que a lei determina? A gente fica perplexo”.
Para os juristas, ainda falta conhecimento sobre os direitos da infância e adolescência. O Código Penal passou por mudanças e excluiu de seu texto a expressão “mulher honesta”, que facilitava a vida de estupradores e criminosos ao questionar a idoneidade das vítimas. Mas as decisões dos dois tribunais deixam claro que esta prática ainda está em voga. A decisão do STJ é embasada pelo fato de as meninas serem “prostitutas reconhecidas”. O relator do STJ, ministro Arnaldo Esteves Lima, foi procurado ontem pela reportagem, mas não quis se pronunciar sobre o caso. Agora o Ministério Público vai trabalhar para tentar reverter a decisão.
Para os especialistas, não punir quem explora sexualmente crianças e adolescentes é ignorar que há uma rede criminosa agindo. Sem demanda não há oferta. “Não tem nenhum elemento neste negócio do sexo criminoso que não tenha a mesma responsabilidade. Colocar o cliente como não responsável pela exploração é um pensamento que viola direitos humanos e incentiva a impunidade. É um grande retrocesso”, afirma Neide Castanha, pesquisadora e presidente do Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Para ela, não há combate sem punir os clientes.
Fonte: Gazeta do Povo
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