Luis Augusto Gomes
Na condição de cassado que faz política, o ex-ministro José Dirceu está sujeito ao envolvimento de seu nome em declarações e desmentidos cuja dimensão é proporcional à proximidade com o poder que todos sabem que tem. É assim mais uma vez quando ele vem a público dizer que não revelou à revista "Veja" sua defesa do rompimento do governo com o PMDB, citando nominalmente o ministro Geddel Vieira Lima e avaliando que esse partido aliado do presidente Lula lhe prepara "a maior traição de todos os tempos".
Só que desta vez alguns aspectos se alinham para fazer crível aquele velho ditado segundo o qual onde há fumaça há fogo. O também ex-deputado José Dirceu, em recente passagem por Salvador, confidenciou a pelo menos três interlocutores ter Lula dito ao ministro Geddel que ele perderia o cargo se rompesse com o governador Jaques Wagner. A aliança PT-PMDB na Bahia, vitoriosa sobre o carlismo em 2006, é por isso mesmo um símbolo e um exemplo para as articulações que visam, em 2010, levar a ministra Dilma Rousseff (PT) ao Palácio do Planalto.
Lula sabe disso melhor do que ninguém, e ao desembarcar em solo baiano no último dia 23, três dias após a performance de Dirceu, anunciou, em entrevista, todo o roteiro do que espera ser o processo eleitoral local: Wagner candidato à reeleição e as três vagas restantes da chapa, duas de senador e uma vice-governador, para "negociar com o PMDB e outros partidos". Não satisfeito, completou: "Estou convencido de que os companheiros do PT e do PMDB vão repetir no plano estadual o mesmo entendimento que existe no plano federal".
No dia seguinte, em evento no Centro de Convenções, foi direto ao ponto, e na presença de ambos afirmou a Geddel: "Pensei que você e o Wagner tinham brigado, mas o Wagner falou tanto de você nesta tribuna..." Com sua clareza e contundência, o presidente mostrou publicamente o que deseja. Não se sabe se Dirceu tem um objetivo político diferente, que dependa da queda de Geddel para consumar-se, mas a suposta informação que deixou escapar na Bahia tem veneno suficiente para satisfazer a múltiplos interesses.
José Dirceu foi na década de 60 um líder estudantil, como se diz hoje, "referência" de uma geração que levou sua insatisfação às ruas naquele período mágico da história da humanidade. Tinha uma proposta para o país e empenhou a vida por concretizá-la, tendo sido preso e depois banido pela atuação contra o regime militar. Sua história beira o romantismo, da cirurgia plástica para mudar a fisionomia e escapar do aparelho policial à vida clandestina supostamente pacata de comerciante em cidade do interior, onde constituiu família e viveu feliz por muitos anos.
Resistindo às intempéries, chegou aos tempos democráticos como fundador e um dos mentores do PT sem perder o "punch" da juventude, como ficou claro no episódio em que o então governador paulista Mário Covas (PSDB), em meados de 2000, foi agredido por manifestantes posteriormente a uma declaração de Dirceu de que "a oposição vai apanhar nas ruas e nas urnas". Deputado de 500 mil votos, chegou ao poder central como superministro de Lula a partir de 2003.
Em 2005, o episódio do "mensalão" – compra de votos de deputados na Câmara federal –, do qual foi apontado como chefe em inquérito em trâmite no Supremo Tribunal Federal, não o fez afastar-se da atividade política. Montou "blog", dá entrevistas, faz conferências e participa amiúde da vida política de seu partido, o PT. Assemelha-se, assim, a seu algoz igualmente cassado no caso "mensalão", Roberto Jefferson, que apesar de destituído dos direitos políticos permanece presidente nacional do PTB. (LAG)
O "mensalão" foi um processo em que, mesmo havendo muitos culpados, somente os dois peixes grandes e um terceiro 100% indefensável foram condenados. A maioria safou-se, marcando no Brasil um novo tempo, em que os julgamentos políticos passaram a ser uma desavergonhada pantomima, como seu viu no posterior "escândalo dos sanguessugas".
Não deixa de ser estranho esse tipo de justiça que permite a Dirceu e Jefferson, em última análise, ter influência sobre a coisa pública. Acusados de agir com decoro, quebrar o juramento à Constituição, trair, enfim, com a má conduta os eleitores e cidadãos, deveriam estar inabilitados para o exercício da política, ao menos por certo período, a menos que mentirosos sejam os que os condenaram, e aí estariam resguardados pelo direito moral. De qualquer forma, alguma coisa está errada nesse meio-termo.
Entretanto, para o bem ou para o mal, o fato é que esta é a realidade com a qual lidamos agora: dezenas de políticos flagrados em crimes de corrupção, prevaricação e similares podem escapar pelo corporativismo, aproveitar-se das brechas da lei e buscar a reeleição, a macabra – para a democracia – "anistia do voto popular". Quadra da vida nacional que permite a Dirceu ostentar a intimidade com o poder que jamais perdeu, dar recados e procurar influenciar a seu critério os destinos da nação.
Fonte: Tribuna da Bahia
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