O presídio da Papuda (assim como o de Curitiba, Rio de Janeiro etc.) tornou-se o locus onde “habitam” tanto as elites corruptas (Maluf é um símbolo desse grupo) como os excluídos. Finalmente, todos republicanicamente no mesmo lugar. Para se chegar a isso, no entanto, demoramos mais de 500 anos.
Casa Grande e senzala (séculos XVI a XVIII). No tempo do Brasil colonial (de 1500 até o princípio do século XIX) as elites dominantes (econômicas e financeiras) e dirigentes (políticas) habitavam a Casa Grande, que tinha em seu entorno várias senzalas ocupadas pelos escravos (ver G. Freyre, Casa Grande e senzala). Seguia-se a lógica (violenta) do sadismo contra os africanos, índios e pobres.
Essas elites, formadas por selvagens colonizadores (corruptos e violentos), que para cá vieram (portugueses, franceses, holandeses, alemães, ingleses, espanhóis etc.) com o intuito de ficarem ricos e voltarem para seus países, viviam seu mundo privado e patriarcal. Mandavam e desmandavam, de acordo com suas próprias “leis” (ou seja, não estavam sujeitos à lei monárquica vigente – as Ordenações).
Por força da “natureza” (dizia a ideologia vigente) as elites dominantes (os proprietários, senhores de engenho, os capitães hereditários) eram seres superiores. Todos os demais eram seres inferiores.
Sobrados e mucambos (século XIX). O ingresso do Brasil na modernidade (1808, quando aqui se instala o governo português – a burocracia estatal – e tem início o mercado capitalista) coincide com o processo de migração dos proprietários rurais para a cidade. Eles habitavam os sobrados, enquanto o resto vivia em mucambos (ver G. Freyre, Sobrados e mucambos).
No século XIX incrementa-se a distinção entre elites dominantes (econômicas e financeiras) e elites dirigentes (políticas e alta administração). Estas, claro, sempre subordinadas àquelas.
O centro econômico do Brasil, ao mesmo tempo, se traslada do Nordeste para o Sudeste. Nascem novas profissões (por causa da urbanização) assim como uma nova hierarquia social. Passamos a ter as elites, os proprietários, as classes médias (funcionários ou pessoas de talento com sucesso) e os escravos e pobres.
As elites dominantes “compravam” as leis ou as sentenças judiciais em seu benefício. Desobedeciam caprichosamente às normas, sem nenhuma consequência. Mas seus poderes privados e mandonistas mudaram (porque agora passam também a vigorar os valores europeus burgueses, contrários aos valores primitivos dos colonizadores brutos e corruptos). Dois sistemas vigentes.
O familismo encontrou limites nas novas estruturas jurídicas (que falam em direitos individuais, em valores universais). O patriarcalismo rural entrou em decadência. O personalismo individual se arrefeceu, ganhando importância a figura do Imperador. As dívidas dos patriarcas começaram a ser cobradas.
As classes “superiores”, de qualquer modo, já dominadas pelas teorias racistas, mantinham o total desprezo pelas ruas (pelas camadas “inferiores”). Não há alteridade (ver Jessé Souza, A elite do atraso).
Com a europeização do Brasil os costumes mudaram (roupas, comidas, modos de falar, comportamento público etc.). Houve “um banho de cultura”. A escravidão foi formalmente abolida (1888), mas em nada se alterou a impunidade das classes dominantes e dirigentes nem o desprezo pelos desiguais (pobres, africanos e índios). Era impensável alguém da elite na cadeia.
Mansões e condomínios fechados “versus” favelas (século XX). No século XX, sobretudo depois de iniciado o processo de industrialização (com particular relevância a partir de 1930), os habitantes da Casa Grande e dos Sobrados se trasladam (junto com boa parte da classe média) para mansões e condomínios fechados. Aqueles que viviam em senzalas ou mucambos foram para as favelas.
A impunidade das elites corruptas (dominantes e dirigentes, sejam as econômicas e financeiras, sejam as políticas e alta administração), no entanto, continua. O interesse público se confunde com os interesses dos particulares poderosos, que mandam na política e na administração pública.
No plano ideológico vigora o culturalismo liberal racista (Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro etc.), que continua sustentando privilégios para aqueles “culturalmente mais preparados”. (ver Jessé Souza, A elite do atraso). Em termos de hierarquia social temos: as elites dominantes e governantes, os proprietários, as classes médias, os trabalhadores cada vez mais precarizados (surgidos com a industrialização) e os pobres excluídos.
Mensalão e Lava Jato (século XXI). Somente depois do mensalão (2012) e da Lava Jato (de 2014 para frente) é que os brasileiros perceberam que o princípio do império da lei pode valer para todos.
Finalmente estão habitando o mesmo local (a Papuda, o presídio de Curitiba etc.) tanto os moradores da Casa Grande, dos Sobrados e dos condomínios fechados (ou mansões) como os das senzalas, mucambos e favelas.
Mensalão e Lava Jato, apesar dos seus incontáveis problemas jurídicos, são as maiores revoluções desarmadas que já ocorreram no Brasil. Elas começam a reduzir a impunidade das classes dominantes e dirigentes. É por isso que nós devemos apoiar a Lava Jato, enquanto ela acontece dentro da lei.
De outro lado, não há como não fazer valer a Lava Jato para todos (“erga omnes”). Até aqui, mensalão e Lava Jato se centraram (prioritariamente) na corrupção petista e muito acanhadamente nos desmandos de membros de outros partidos.
Já condenaram vários agentes fortes do mercado (Odebrecht, JBS etc.), mas todos ligados ao PT. Faltam ainda outros agentes econômicos (não ligados ao PT) assim como os potentados financeiros (até aqui intocáveis).
A Lava Jato somente se tornará completamente legítima (do ponto de vista político) quando alcançar também os corruptos do PSDB, DEM, PP etc., assim como os bancos, os agentes do mercado não ligados ao PT etc. Quando a Justiça alcançar, por exemplo, a corrupção de Michel Temer e Aécio Neves, que pediu R$ 2 milhões de propina para a JBS, ela será vista como órgão imparcial.
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