Embate entre populistas iliberais e democratas vai se repetir em uma série de eleições pelo mundo
Por Rodrigo Turrer
Se 2021 foi o ano em que a ameaça à democracia se cristalizou em várias partes do mundo, com a invasão do Capitólio por uma turba de radicais, em 6 de janeiro, 2022 será um ano em que os embates entre populismo radical e democracia estarão ainda mais presentes.
“A batalha entre os defensores do autoritarismo e dos modelos iliberais contra a democracia vai crescer em 2022, e não há sinais de diminuição do refluxo democrático que vimos nos últimos anos”, afirmou ao Estadão Arend Lijphart, professor emérito de ciência política na Universidade da Califórnia, autor do livro Modelos de Democracia: desempenho e padrões de Governo em 36 países, e um dos principais estudiosos do assunto no mundo.
Para Lijphart, o avanço do populismo e do nacionalismo tem acontecido de maneira mais intensa em países que eram modelo de democracia, e esse avanço ameaça desintegrar a ordem mundial surgida depois da queda do Muro de Berlim, e os princípios da democracia, do estado de direito e dos direitos humanos.
ELEIÇÕES EM SÉRIE. Um dos melhores exemplos do embate é a eleição de meio de mandato nos EUA, em novembro, que pode derrubar a maioria democrata no Congresso americano. A votação já tem se mostrado uma disputa renhida entre defensores do ex-presidente norte-americano Donald Trump e republicanos mais moderados, além dos próprios democratas.
A América Latina também terá dois campos de batalha ideológicos nas urnas. O sentimento antigoverno, que tem dominado as últimas eleições, deve perdurar. Uma questão central é se a raiva vai dar lugar ao pragmatismo sobre o crescimento econômico e a proteção social.
Na Colômbia, o líder nas pesquisas e favorito na eleição presidencial de maio é o populista de esquerda Gustavo Petro, um admirador de Hugo Chávez e ex-guerrilheiro do M-19, guerrilha urbana que atuou de 1970 a 1990 e virou um popular partido (Aliança Democrática). Ele defende uma agenda de aumento de impostos sobre imóveis e empresas, além da redução da importância de petróleo e carvão na economia colombiana.
No Chile, o presidente eleito, o esquerdista Gabriel Boric, terá de lidar com a nova Constituição que está sendo redigida por constituintes eleitos em 2020, após a explosão social no fim de 2019, que colocou em xeque a economia de livre mercado tocada pelo país.
A convenção constituinte tem até julho para chegar a um acordo sobre um novo projeto constitucional, que será submetido a referendo. Com a esquerda sendo maioria, a nova Carta pode trazer restrições à mineração, além de mais gastos do Estado com saúde e aposentadorias.
A Europa também terá eleições decisivas em 2022. Na França, o candidato de extrema direita Éric Zemmour tem 18% das intenções de voto na eleição presidencial, disputando o segundo lugar e ameaçando o presidente do país, Emmanuel Macron.
Sem trajetória política, Zemmour tem ganhado espaço entre os conservadores da França ao defender uma linha ainda mais radical do que Marine Le Pen, da Frente Nacional, a principal opositora de Macron nas eleições de 2017. Se as eleições fossem hoje, Macron teria entre 24% e 27% dos votos no primeiro turno. Zemmour obteria entre 17% e 18%, à frente de Le Pen (de 15% a 16%).
Portugal terá eleições antecipadas para o Parlamento em 30 de janeiro, com o partido de extrema direita Chega crescendo nas pesquisas depois de ficar em terceiro lugar na eleição presidencial do ano passado. Na Hungria, seis partidos de oposição escolheram um candidato conservador moderado para tentar formar uma coalizão contra o iliberal Viktor Orban.
GUERRA CULTURAL. O embate ideológico, cada vez mais polarizado em várias eleições importantes em 2022, é mais um capítulo no processo de erosão democrática que ocorre em todo o mundo. “As democracias enfrentam um processo de ‘erosão’, estão menos estáveis e menos democráticas, e potências autoritárias como China e Rússia patrocinam seu modelo para países que dependem delas”, afirma Lijphart. “Também vemos uma insatisfação crescente com o modelo democrático, mas o aspecto mais perturbador disso é que o recuo mais significativo ocorre em países considerados plenamente democráticos, em berços da democracia.”
GOLPES. Em 2021, sete tentativas de golpe de Estado ocorreram no mundo, e cinco delas tiveram êxito. O número é o maior das últimas duas décadas, segundo um monitoramento dos professores Jonathan Powell e Clayton Thyne, das universidades Central da Flórida e Kentucky. O balanço leva em conta as tentativas – frustradas ou não – de tirar um líder do poder.
A medição, no entanto, não inclui casos em que o próprio presidente manobra a Constituição numa escalada autoritária, como ocorreu na Tunísia, em 2021, e em países como Nicarágua, Belarus, Rússia e outros ao longo dos últimos anos. Esse tipo de erosão democrática de longo prazo é a mais insidiosa, e a que mais ameaça as democracias.
Segundo o relatório anual Liberdade no Mundo, da Freedom House, instituição americana que se dedica a monitorar a questão, 2020 foi o 15.º ano consecutivo de declínio na liberdade global. Em 2005, a organização identificava 89 países considerados “livres”; hoje, são 82. Os países “não livres” passaram de 45 para 54. Menos de 20% da população mundial vive em um país livre. Hoje, 3 em 4 pessoas moram em nações que experimentaram declínio. A “diferença democrática” – o número de países que melhoraram suas democracias menos o de países que apresentaram declínio democrático – foi a maior da série iniciada em 1995: 45.
A toada segue a mesma em 2021, com países como Hungria, Polônia, Nicarágua, Filipinas e Belarus registrando um aumento da perseguição a opositores do governo e o silenciamento da oposição. “A longa recessão democrática está se aprofundando”, diz a Freedom House.
RAÍZES PROFUNDAS. As causas dessa erosão democrática incluem o descontentamento crescente das populações provocado pelo aumento da desigualdade. Essa raiva levou ao crescimento do populismo, com suas soluções fáceis para problemas complexos, e o
consequente enfraquecimento das normas democráticas, além do acirramento das tensões ideológicas do radicalismo e a expansão das notícias falsas e a fragmentação da mídia. Políticos populistas responderam a esses sentimentos de raiva e frustração insuflando o radicalismo para desse modo tentar mostrar aos eleitores que suas queixas são importantes.
Uma pesquisa realizada pelo Pew Research, centro de estudos com sede em Washington, nos EUA, mostrou que 52% da população está insatisfeita com o funcionamento de sua democracia, em comparação com 44% que estão satisfeitos. A pesquisa, feita com 38.426 pessoas em 34 países desenvolvidos e em desenvolvimento, busca subsídios para entender a importância dos valores democráticos.
PESSIMISMO. Para especialistas, é pouco provável que a situação melhore em um futuro próximo. “Estou pessimista, porque a situação atual tem raízes sociais e econômicas muito profundas. Não se trata apenas da vitória de Trump, da AFD (partido de extrema direita da Alemanha) ou de qualquer extremista, mas de uma polarização que se enraizou em nossa estrutura social”, disse ao Estadão o cientista político Adam Przeworski, professor da Universidade de Nova York e autor dos livros Crises da democracia e Por que eleições importam.
“Um estudo recente nos EUA mostrou que os jantares de Ação de Graças, no ano passado, nos quais os participantes viviam em distritos eleitorais governados por partidos diferentes, eram quase 30 minutos mais curtos do que aqueles que vinham do mesmo distrito. Em 1960, 5% das pessoas diziam que ficariam infelizes se seus filhos se casassem com um eleitor de outro partido. Atualmente, isso está na faixa de 50%. A polarização entrou na unidade mais básica da estrutura social – a família.”
Para Przeworski, a melhor maneira de garantir a longevidade da democracia é preservar de todas as maneiras as instituições de controle. Órgãos do Judiciário não podem sofrer influência política nem ser dominados por juízes parciais, partidos políticos devem ser livres e organizações de mídia estabelecidas precisam ser independentes.
Além disso, a mobilização para votar é essencial. “A forma mais eficaz para equilibrar o jogo político é a mobilização das pessoas, com sindicatos e organizações da sociedade civil, para garantir que a democracia funcione”, afirma Przeworski.
O Estado de São Paulo