Quando foi à Rússia em visita oficial a Vladimir Putin, duas semanas antes de a guerra contra a Ucrânia eclodir, o presidente Jair Bolsonaro atendia a pedidos enfáticos da ministra Tereza Cristina. À época, a dona da pasta da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tinha na manga uma grande cartada como sua última ação no comando do ministério: anunciar um audacioso plano para aumentar a produção de fertilizantes produzidos em território brasileiro. E a Rússia estava intimamente ligada a isso.
A articulação dessa agenda movimentava os bastidores de Brasília há meses. Em salas fechadas do Mapa e da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, representantes de nove ministérios e entidades como Embrapa e Ibama se debruçavam sobre documento escrito em 2008, na gestão do então ministro da Agricultura Reinhold Stephanes, após uma grave crise econômica global que levou a um pico de alta no preço de fosfato, da amônia e do potássio. Aquele primeiro texto estava agora servindo de base para a redação do Plano Nacional de Fertilizantes (PNF) que, inicialmente, estava programado para ser anunciado como uma espécie de presente de despedida de Teresa Cristina ao agronegócio, o que deveria acontecer poucos dias antes de sua desincompatibilização do governo para concorrer ao Senado.
Após esforços do governo para atrair investimentos russos, o brasil vê como incerto o futuro das empresas no país
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Abertura do pregão na B3, a bolsa de valores de São Paulo. Naquele dia, a Boa Safra se tornou a 190ª empresa brasileira listada no Novo Mercado, segmento com os padrões mais elevados de governança corporativa.
Sobre documento escrito em 2008, na gestão do então ministro da Agricultura Reinhold Stephanes, após uma grave crise econômica global que levou a um pico de alta no preço de fosfato, da amônia e do potássio. Aquele primeiro texto estava agora servindo de base para a redação do Plano Nacional de Fertilizantes (PNF) que, inicialmente, estava programado para ser anunciado como uma espécie de presente de despedida de Tereza Cristina ao agronegócio, o que deveria acontecer poucos dias antes de sua desincompatibilização do governo para concorrer ao Senado.
Em paralelo ao trabalho burocrático dos técnicos e especialistas, a dama de aço do governo Bolsonaro intensificou o que o time de trabalho batizou de “A Diplomacia dos Fertilizantes”. Primeiro destino: Rússia. Em 17 de novembro, a ministra se encontrou com representantes de empresas locais de fertilizantes e do governo Putin para uma reunião que tinha como objetivo oficial garantir o fornecimento do insumo a preços palatáveis aos produtores brasileiros. Após o encontro com o ministro do Desenvolvimento Econômico da Rússia, Maksim Reshetnikov, a própria ministra declarou o tom da conversa. “O ministro reforçou que o Brasil é um parceiro estratégico e que podemos ficar absolutamente tranquilos com o fornecimento de potássio e fósforo”, disse na ocasião.
NOVO RUMO Segundo fontes da Esplanada dos Três Poderes, no entanto, o encontro serviu para uma pré-apresentação do PNF como ferramenta para, de forma geral, atrair o capital russo para o mercado de fertilizantes brasileiro e, em particular, para acelerar a compra da Unidade de Fertilizantes Nitrogenados (UFN3) da Petrobras em Três Lagoas (MS) pelo grupo russo Acron. Segundo o diretor da Efficienza Negócios Internacionais Fábio Pizzamiglio, quando começou a trabalhar no PNF, ano passado, o foco do governo era a Rússia. “Parecia uma boa ideia”, afirmou o executivo. Segundo o diretor de Projetos do Mapa, Luis Rangel, o plano mostrava uma ação do governo em um ponto nevrálgico para os russos: “Se o Brasil tem um plano estatal para o setor, então o investidor se sente seguro”, afirmou. Foi essa a segurança que Tereza Cristina foi dar aos russos.
VENDA FINALIZADA
Menos de três meses depois, a primeira grande ação da Diplomacia dos Fertilizantes surtia efeito. No dia 4 de fevereiro, em visita a Três Lagoas (MS), cidade onde as obras da fábrica de fertilizantes da Petrobras que já consumiram R$ 3 bilhões em investimento estão paradas desde 2014, Tereza Cristina anunciava: “Concluímos a venda da UFN3 para a Acron”. Ali, o passo inicial para que a meta de reduzir a dependência da importação de fertilizantes de 85% para 60% em 30 anos, como prevê o PNF, era dado. A narrativa estava se construindo como planejado. A etapa seguinte era um apertar de mãos entre os presidentes dos dois países, Rússia e Brasil, nas terras de lá.
Foi neste contexto que a viagem de Jair Bolsonaro à Moscou foi agendada para o dia 14 de março. Cancelar a visita a Putin, que havia sido combinada muito antes da escalada do conflito com a Ucrânia e como queriam os Estados Unidos, seria, portanto, uma desfeita ao país que livrava a Petrobras de um elefante branco do qual tentava se desfazer desde 2019. Para o advogado especialista em governança Fernando Pessoa, a decisão do Planalto em manter a ida do presidente brasileiro foi uma atitude acertada, ainda mais diante do fato de que do ponto de vista do conflito geopolítico o Brasil é um agente irrelevante. “Cancelar a viagem só iria irritar o presidente da Rússia que nos vende 20% dos fertilizantes que consumimos e que tinha acabado de anunciar um investimento no Brasil”, afirmou.
Tudo ia bem, mas no dia 24 de fevereiro a guerra começou de fato. Sem querer, ao entrar na Ucrânia, a Rússia atingiu como um míssil o Ministério da Agricultura brasileiro. A narrativa em construção ganhou dúvidas. O que acontecerá com os planos anunciados pelo vice-presidente da Acron, Vladimir Kantor, que previa começar as obras da unidade ainda em julho? Até os maiores especialistas do setor como Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e atual coordenador do Centro de Agronegócios da FGV, não têm uma resposta clara. “A Acron agora é uma interrogação”, afirmou. A empresa russa não se manifestou mais sobre o assunto, tampouco o fez o governo federal.
Em funcionamento, a UFN3 teria capacidade de produção de 3,6 mil toneladas de ureia e de 2,2 mil toneladas de amônia por dia, ou cerca de 1,3 milhão e 803 mil toneladas anuais, respectivamente. A produção é irrisória: não chegaria nem perto de atender a demanda do mercado doméstico de mais de 45 milhões de toneladas de fertilizantes em geral, o que coloca o Brasil no posto de quarto maior consumidor do planeta, absorvendo 8% da produção de mundial de fertilizantes. Ainda assim, o começo das atividades seria uma boa sinalização para outros investidores olharem para o País, ainda mais se o pontapé inicial das obras acontecesse próximo à data inicialmente programada para a divulgação do Plano Nacional de Fertilizantes.
Para o diretor técnico adjunto da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Reginaldo Minaré, o plano indica uma mudança significativa na vontade política para a construção de uma indústria essencial ao agro. “Nos últimos 25 anos não houve esforço do governo para a construção dessa indústria, a despeito da alta demanda interna.” Por uma infeliz coincidência, esse novo arcabouço chega em um momento em que os russos, detentores das melhores tecnologias de produção, estão com outras prioridades e sofrendo com sanções econômicas que podem prejudicar até mesmo as empresas de lá já instaladas por aqui.
RUSSOS NO BRASIL Este é o caso da Uralkali. Considerada a 9ª maior produtora de fertilizantes à base de potássio do mundo com faturamento de US$ 2,7 bilhões em 2020, a empresa anunciou em dezembro do ano passado a compra de 100% da UPI Norte, acionista da maior distribuidora brasileira de fertilizantes, a FertiGrow. Em comunicado emitido na época, o CEO da Uralkali Trading, Alexander Terletsky, afirmou que a aquisição fazia parte de um plano de fortalecimento do grupo nos maiores mercados compradores do insumo. “O Brasil é um dos maiores consumidores de fertilizantes minerais, então a aquisição da FertGrow ajudará a otimizar significativamente as operações da Uralkali na América Latina”, disse Terletsky. A reportagem tentou contato com a empresa para questionar sobre os possíveis impactos da guerra em sua operação brasileira, mas não obteve sucesso.
A Uralkali não foi a única a enxergar na expansão do agronegócio nacional, que deve alcançar Valor Bruto de Produção (VBP) de US$ 1,2 trilhão este ano, como uma grande oportunidade para a supremacia russa no mercado global de fertilizantes. No mesmo mês de dezembro de 2021, o grupo russo EuroChem, que desde 2016 já tinha o controle acionário da Fertilizantes Tocantins, anunciou a compra de 51,48% da Heringer em um negócio de R$ 554,6 milhões que foi celebrado por analistas como um passo importante para o aumento da competitividade do setor. Dados sobre participação de mercado de 2017 indicam que quatro grandes companhias dominam o setor no Brasil. A Heringer, na 4ª colocação com 13% de participação, está entre elas. Perde para a norueguesa Yara (25%), para a americana Mosaic (20%) e para a brasileira Fertipar (15%). Os demais 26% são pulverizados. Agora, com a união, a expectativa do grupo EuroChem era alcançar 20% de participação no País.
Diante do novo cenário, o coordenador do Mestrado Profissional em Agronegócio, Felippe Serigati, afirma que “o destino das empresas russas no Brasil é completamente incerto”. Fábio Pizzamiglio, da Efficienza, concorda, afinal não é claro como ficará a circulação de dinheiro russo no mundo. “Além da forte desvalorização do rublo, a Rússia terá que aumentar as reservas internacionais e repatriar divisas”, afirmou Pizzamiglio. Outras dúvidas dizem respeito a ferramentas para a circulação do capital russo no mercado internacional, uma vez que foram excluídos do sistema Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (Swift),além das incertezas sobre a priorização da utilização de recursos.
Todas essas pontas soltas impactam o Brasil em um momento em que o País se preparava para colher melhorias no ambiente de negócios feitas nos últimos anos e de uma vontade da Rússia de diversificar a origem de sua produção. Para o sócio do escritório Feijó Lopes, Lúcio Feijó Lopes, a conjunção da vontade dos dois países, no pré-guerra, teria chance de atrair novas tecnologias para o desenvolvimento do setor. “Nos últimos dez anos, o Brasil aperfeiçoou a Lei da Liberdade Econômica, a Lei do Agro, e garantiu cumprimento de contratos”, afirmou. No mesmo momento, disse Lopes, a Rússia “fazia um movimento para verticalizar a cadeia de fertilizantes, buscando um contato direto com seus consumidores finais, como o produtor brasileiro”. Parecia o casamento perfeito.
ESTRATÉGIA
IMPORTAÇÃO Para o agronegócio nacional, a situação fica ainda mais grave uma vez que 20% da importação brasileira de fertilizantes vem da Rússia e encontrar novos fornecedores não será fácil. Segundo o sócio da Santos Neto Advogados, Frederico Favacho, “ainda que China e Canadá pudessem fornecer parte dos insumos, a produção nestes países é justa”. Por isso, segundo ele, a substituição não seria possível no curto prazo. Roberto Rodrigues, da FGV, ainda aponta a Jordânia como uma opção, mas essa alternativa é também inviável com a agilidade necessária. “Não temos relações com eles e construí-las leva tempo”, afirmou.
Plano Nacional dos Fertilizantes deve atrair investidores estrangeiros que miram crescer no 4o maior mercado consumidor do insumo
“Não houve esforço do governo para fortalecer o setor nos últimos 25 anos”
Neste cenário, o Plano Nacional de Fertilizantes ganha mais peso. Para Fábio Pizzamiglio, da Efficienza, “o governo começou a agir, mas o plano é de longo prazo”. Segundo estipulado no próprio PNF, diminuir a dependência do Brasil para 60% levaria cerca de 30 anos. Ainda entram nessa conta, a necessidade de mudanças regulatórias profundas já que, especialmente em potássio, a extração dependeria de minas em terras protegidas, como as indígenas na Amazônia. Uma situação que Jair Bolsonaro tem usado para tentar emplacar o Projeto de Lei 191/2020, que libera o garimpo nestes territórios. E aí o Brasil enfrentará outro problema com o recrudescimento da União Europeia em barrar a compra de commodities agrícolas ligadas ao desmatamento.
Além de um desastre sob qualquer ângulo humanitário, a guerra da Rússia impactou o pacífico e fundamental agronegócio brasileiro colocando a segurança alimentar do planeta sob real ameaça.
Estadão / Dinheiro Rural