Mesmo que seja pelos motivos errados, existe uma parcela do conservadorismo populista que se encanta pelo líder russo - e ele retribui de várias maneiras.
Por Vilma Gryzinski
Para quem se acostumou à comodidade de pensar que Vladimir Putin é um aliado da esquerda, pelos laços com regimes como os de Cuba e da Venezuela e o antiamericanismo visceral, é uma surpresa descobrir que um dos debates do momento nos Estados Unidos é sobre o apoio da direita ao autocrata russo.
Como tantas outras coisas, a discussão foi empurrada por Tucker Carlson, o influente polemista da Fox, quando disse, no começo de dezembro, que a Rússia só queria “proteger suas fronteiras” ao fazer uma formidável concentração de tropas bem do lado da Ucrânia – uma jogada que Putin está repetindo para arrancar um compromisso dos Estados Unidos que o país vizinho não entrará para a Otan, a aliança militar ocidental, nem receberá armamentos de fora, o que seria praticamente uma rendição.
Conquistar a faixa da direita mais populista é uma das provas da prodigiosa sagacidade de Vladimir Putin, um gênio do mal, mas gênio.
O fenômeno começou na era Trump. Acusado, equivocadamente, de ter um acordo secreto com o regime russo para promover sua eleição, Donald Trump sempre demonstrou uma notável docilidade em relação ao russo.
Mesmo que isso não tenha se traduzido politicamente – a Rússia foi mais penalizada ainda -, Trump chegou a dizer que, entre os serviços de inteligência americanos que denunciavam a campanha russa pelos meios digitais para influenciar a eleição presidencial, e a negativa de Putin, ficava com a segunda hipótese.
A declaração culminou uma guinada nos alinhamentos ideológicos nos Estados Unidos. Durante a Guerra Fria, os democratas eram mais propensos a negociações e concessões em relação à União Soviética, uma tendência que se projetou para a Rússia quando o império comunista acabou.
Os republicanos eram a linha dura, os “falcões” que desafiavam os adversários soviéticos em todos os campos – e empurraram a extraordinariamente incruenta dissolução do maior inimigo que os Estados Unidos já tiveram.
Diante do encantamento de Donald Trump com Putin, muitos de seus partidários começaram a achar que o russo não era tão mau assim, não deveria ser rejeitado porque “ainda vamos precisar dele” no combate ao extremismo muçulmano e estava do lado do conservadorismo social em temas como religião, homossexualidade, educação, nacionalismo e patriotismo.
Rick Lowry, da direita mais tradicional como diretor da revista National Review, resumiu assim esse admiração:
“Os motivos do apelo de Putin aos populistas americanos são muitos. Eles admiram sua força e sua audácia na promoção dos interesses da Rússia. Acham que tem os inimigos certos, o mesmo establishment que tripudiou sobre Donald Trump. Veem nele um antídoto ao cosmopolitanismo da União Europeia e uma renovada reafirmação da soberania nacional. Invejam sua reação a causas progressistas da moda e sua aliança com a Igreja russa para formar uma frente unida em favor do que consideram os valores tradicionais da civilização ocidental”.
É claro que Lowry considera tudo um trágico engano que favorece um regime brutal e autoritário que “prende opositores, assassina críticos, invade e esquarteja países vizinhos, enriquece uma cleptocracia e instaura uma ditadura vitalícia”.
A direita populista americana não é a única conquista de Putin nesse campo. Os líderes mais conhecidos dessa tendência ideológica na Europa são todos admiradores de Putin – quando não devedores, como Marine Le Pen, que recorreu a um banco russo quando seu partido estava endividado e precisando de dinheiro. Nigel Farage, o homem do Brexit, e o italiano Matteo Salvini são outros admiradores de Putin.
Na Alemanha, a capacidade de manipulação do ex-agente da KGB atinge o ápice. Falam a favor do regime russo tanto o partido mais à esquerda, Die Linke, quanto o mais à direita, o Alternativa para a Alemanha. Outro campo fértil do momento: o movimento antivacinação. O canal RT (originalmente, Russia Today, um eficiente instrumento de propaganda) intensificou as teorias conspiratórias pouco antes da eleição de setembro.
A motivação de Putin e seu regime, herdeiros das famosas habilidades soviéticas nas artes negras da contrainformação, é cristalina: tudo que desfavorece os Estados Unidos, a União Europeia e a aliança ocidental é bom para a Rússia. Como as democracias têm um de seus principais pilares no dissenso, o terreno é fertilíssimo para as jogadas dirigidas.
Reconhecer que Putin é um gênio nesse tipo de manipulação não significa achar que ele seja um agente positivo.
Cooptar Tucker Carlson, com todo o poder de influência que ele tem sobre a direita americana, é uma prova de sua maestria nesse tipo de armação.
A questão da Ucrânia vai mostrar no curto prazo se Putin consegue intimidar os Estados Unidos e seus aliados europeus a ponto de aceitarem alguma vantagem para ele. Putin aposta que ninguém quer se enredar num conflito real, de consequências incontroláveis, por causa da Ucrânia. E que Joe Biden não tem impulsão suficiente para aguentar uma queda de braço. Em outras palavras, seria mais fraco do que Donald Trump.
O jogo ainda está na fase intermediária. Uma de suas atrações paralelas é ver como a esquerda coincide com a direita populista em defender posições favoráveis à Rússia de Putin. Não tem como não reconhecer que o homem é fera.
Revista Veja