A chave da política brasileira é a conciliação, mas nossa história social é cruenta. A miscigenação é que consolidou a ideia de um só povo e uma só nação
Por Luiz Carlos Azedo (foto)
Uma nação é formada, historicamente, de território, população, Estado, idioma e identidade comum, para a qual a literatura é sua referência mais importante. Não à toa, Machado de Assis é um totem da nossa cultura. Entretanto, há aqueles que imaginam que tudo aqui está fora do lugar. O debate proposto, em 1920, por Oliveira Viana, sobre as nossas instituições republicanas, 100 anos depois, está vivíssimo. Seu Populações Meridionais do Brasil arrancou aplausos unânimes na época, com exceção de Astrojildo Pereira — que defendia a industrialização e condenou suas teses racistas —, um intelectual de origem anarquista, que viria a fundar o Partido Comunista, em março de 1922.
O Centenário da Independência foi um ano do balacobaco. Desnudou mudanças em curso no mundo e no Brasil, balançou os alicerces da Primeira República. O otimismo da belle époque fora substituído pelo trauma da I Guerra Mundial (1914-1918), o comunismo rondava o mundo após a Revolução Russa de 1917. Ambições civilizatórias levaram o presidente Epitácio Pessoa a mudar a face da capital federal para celebrar a data e sediar a Exposição Universal do Rio de Janeiro. Em São Paulo, houve a polêmica Semana de Arte Moderna.
Que país era esse? Com suas greves nas principais cidades, os sindicatos ganharam força. O povo queria melhores condições de vida e de trabalho. A economia da Primeira República (1889-1930), regida pela Constituição de 1891, estava mal das pernas. E lideranças militares, que não reconheciam a derrota do candidato oposicionista Nilo Peçanha nas eleições presidenciais de março, queriam impedir que Artur Bernardes assumisse a Presidência da República, em novembro.
A prisão do presidente do Clube Militar, marechal Hermes da Fonseca, provocou um levante militar, logo debelado. Porém, um grupo de jovens oficiais do Exército resolveu enfrentar, em plena praia de Copacabana, as forças legais. Foram fuzilados. Sobreviveram apenas Eduardo Gomes e Siqueira Campos. O governo decretou o estado de sítio, os militares envolvidos foram presos e processados. Foi a gênese do movimento tenentista.
Nesse contexto, Oliveira Vianna concluiu que era impossível reproduzir no Brasil o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático francês, o federalismo e a descentralização à americana, que apenas reforçaram “a anarquia branca, o predomínio das oligarquias e o risco de fragmentação”. Defendia “contravir intensivamente às ideias de liberdade” e construir um Estado capaz de se impor a todo o país, inspirado nos “reacionários audazes que salvaram o Império”. Suas ideias embalaram a Revolução de 1930, serviram de alicerce para o Estado Novo, em 1937, e inspiraram os líderes do regime de militar (1964-1985). Infelizmente, renasceram das cinzas com a eleição do presidente Jair Bolsonaro.
Iniquidade social
A chave da política brasileira é a conciliação, mas nossa história social é cruenta. “Entre índios convertidos e os selvagens, os negros escravos, libertos, africanos e crioulos, os brancos reinóis e os mazombos, os mamelucos, os mulatos e os cafuzos, diversos e conflitantes, venceram os conciliadores”, dizia o mestre José Honório Rodrigues, em Conciliação e reforma no Brasil. Apesar de tantos pelourinhos, quilombos, motins, revoltas, repressões sangrentas, fuzilamentos, enforcamentos, esquartejamentos, guerras e guerrilhas, a miscigenação consolidou a ideia de um só povo e uma só nação, muito mais do que a conciliação das elites para se manter no poder, perpetuar o patrimonialismo, a política de compadrio e clientela, e a exclusão social.
Por conveniência, quase não se fala das lutas cruentas: Balaiada (1838-41); Cabanagem (1835-40); Sabinada (1837-38); Levante dos Malês (1835); Cabanada (1832-35); Guerra dos Farrapos (1835-45). Houve as ditaduras de Vargas (1937-45) e dos militares (1964-84), com seus assassinatos, prisões e torturas. A abolição da escravidão mudou o modo de produção e derrubou o Império, mas a República manteve, até hoje, a iniquidade social desnudada pela Guerra de Canudos (1896-97) mesmo nos grandes ciclos de modernização.
Na ditadura Vargas, com a modernização do Estado, a questão operária deixou de ser um caso de polícia, mas a política passou a ser. Os governos de Juscelino Kubitschek e de Fernando Henrique Cardoso reformaram o Estado e modernizaram a economia em bases democráticas, mas a velha desigualdade social continuou na ordem do dia. Mesmo no governo Lula, que atacou o problema da miséria absoluta, a mudança social acabou abduzida pelo transformismo político. As ideias de Oliveira Vianna estão vivíssimas desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro, um saudosista do regime militar, que termina o primeiro mandato nos braços do Centrão. Confronto ou conciliação, atraso ou reformas, autoritarismo ou democracia. Neste Bicentenário da Independência, nossa nação está numa nova encruzilhada do destino.
Correio Braziliense