Inspiração sumiu quando o pacote de estímulos teve, como consequência indesejada, a maior inflação dos últimos 39 anos
Por Maria Cristina Fernandes (foto)
Em maio do ano passado, em entrevista à rede de comunicação pública dos Estados Unidos, PBS, Lula elogiou o pacote enviado por Joe Biden ao Congresso para estimular a economia a reagir ao freio da pandemia: “Temos que fazer o que Biden já fez nos EUA em sua última declaração sobre a economia. Aumentar nossa base monetária, para que possamos dar condições de sobrevivência ao povo brasileiro.”
O pacote foi saudado por muitos como uma vingança da história a favor do Estado indutor do desenvolvimento. Até um livro (“Bidenomics nos Trópicos”, FGV, 2021) foi organizado pelos economistas Nelson Barbosa e André Roncaglia para discutir a experiência neokeynesiana do governo Biden. A idade e a eventual sucessão de outro populista de extrema-direita levou a entrevistadora americana a citar a perspectiva de Lula vir a se transformar no “Biden brasileiro”.
Na segunda-feira, ao reagir a um jornalista que lhe perguntara se a inflação seria uma fraqueza nas eleições legislativas, o presidente americano, aparentemente sem se dar conta de que o microfone estava ligado, disse: “Não, é um grande trunfo, que filho da puta estúpido.”
No dia seguinte, Paul Krugman, um dos maiores defensores do pacote de estímulos, reconheceu a inflação, que fechou 2021 em 7%, o maior índice dos últimos 39 anos, como um efeito indesejado da política expansionista. Antes, porém, culpou o mensageiro. Em sua coluna no “The New York Times” atribuiu ao “poder da narrativa” o que chamou de reação “desmesurada” da opinião pública americana à alta da inflação.
No percurso entre o pacote e a inflação, seu proponente sumiu do discurso lulista. Na entrevista em que abriu o ano eleitoral, o ex-presidente citou 17 vezes os Estados Unidos, mencionou Barack Obama, George W.Bush e Donald Trump, mas não mencionou Biden nem as medidas de seu governo.
Aposentou o “aumento da base monetária”. No seu lugar, fez um aceno com as duas mãos para detentores da dívida pública: “As pessoas colocam obstáculos no tal do Banco Central independente. Esse BC tem que ter compromisso é com o Brasil, não é comigo”.
Os acenos de Lula integram o mesmo pacote que atraiu o ex-governador Geraldo Alckmin para a chapa. Neste lado estão Fernando Haddad e o senador Jaques Wagner (BA). Em almoços com Lula, o ex-prefeito de São Paulo resenha os textos mais recentes de André Lara Resende para embasar sua crítica à chamada “Teoria Monetária Moderna”. As dificuldades de Biden acabaram por respaldar sua convicção de que nem o emissor da moeda mundial pode gastar o que quiser para levar a economia ao pleno emprego.
Do outro lado, aliaram-se os neo-desenvolvimentistas à la Biden, reunidos pelo presidente da Fundação Perseu Abramo, Aloizio Mercadante, com os adversários do tucano, como o ex-presidente do PT Rui Falcão.
Se uns e outros querem crescimento, divergem no peso dado à retomada da confiança para obtê-lo. Ainda que sem arbitrar, em definitivo, em favor de quaisquer dos lados, Lula demonstrou, na entrevista da semana passada, que pende para a saída que, além dos tucanos, lhe permita comer o mercado pelas beiradas. Resumiu esta posição ao dizer que estava em curso a formação de uma aliança não para ganhar a eleição mas para governar o Brasil.
As respostas do mercado ao aceno já haviam começado a surgir, mas na entrevista do gestor Marcelo Kayath ao Valor ganharam nome e sobrenome. Vocalizou uma fatia, ainda minoritária, daqueles que julgam ser melhor abrir uma porta com Lula para não deixá-lo à mercê da esquerda.
No outro extremo resistem os redutos de investidores bolsonaristas. O emissário de um deles encontrou, na semana passada, o ministro do GSI. Disse que o presidente Jair Bolsonaro precisava parar de “falar bobagem” a um receptivo Augusto Heleno.
Entre os que capitularam a Lula e os que se mantêm agarrados a Bolsonaro se esparrama o oceano de investidores da terceira via. Um deles define o estado de espírito: olham para Lula e enxergam Lewis Hamilton, o piloto britânico que, na última volta, perdeu o título da Fórmula 1 para o holandês Max Verstappen.
Tasso Jereissati, um dos políticos mais convergentes com o ativismo financeiro da terceira via, é mais realista. Denuncia o fatalismo com o qual se assiste ao avanço de Lula sobre o centro e o responsabiliza pelo início da capitulação do mercado à candidatura petista.
Dois meses depois da derrota do governador gaúcho Eduardo Leite nas prévias tucanas pelo governador paulista João Doria, o senador pelo PSDB do Ceará passou a advogar a reunião da terceira via sob a candidatura de Simone Tebet. Nanico por nanico, a senadora é a única sem rejeição. Há, porém, uma série de obstáculos a isso. Pra ficar apenas em um, falta-lhe apoio até de seu partido, o MDB.
Se Jereissati foi um dos primeiros que Lula procurou fora de seu partido quando decidiu se lançar é pela capacidade de o senador pensar fora de seu quadrado. A propositura de uma reunião da terceira via sob Simone Tebet não deriva de ingenuidade mas de uma tentativa de salvar o centro político no qual o senador sempre militou e que hoje vê abocanhado por Lula. Até a adesão de Alckmin se deu sem quaisquer discussões programáticas, como uma última pá de cal no PSDB.
A decisão de não disputar mais mandatos tirou os freios do senador: “Lula está se aproveitando da burrice das outras alternativas”. Difícil imaginar o que um acréscimo de massa cinzenta seria capaz de fazer contra o favoritismo lulista. Certamente, porém, a existência de uma terceira via mais robusta seria benéfica até para o PT.
Em entrevista ontem Lula disse que não remontaria seus governos e buscaria “gente nova”. Busca, provavelmente, anular a reação negativa ao artigo do ex-ministro Guido Mantega na “Folha de S.Paulo”.
A maior parte dos petistas que circula em torno de Lula, porém, ainda aponta o dedo para o ex-presidente quando convidados a detalhar os planos do partido. Sobre, por exemplo, como aumentar a base monetária sob um BC independente. Ou ainda como fechar o buraco fiscal e recuperar as políticas públicas.
Dificilmente Lula seria capaz de manter sob sua cartola a poção mágica do PT se houvesse uma terceira via com retaguarda para o embate programático. É assim que o antibolsonarismo lulista inicia o ano eleitoral com uma larga avenida para superar o que o presidente fez do antipetismo em 2018.
Valor Econômico