Para o Partido Comunista Chinês, ‘não há um modelo fixo de democracia’ e nenhum conceito pode ser ditado ‘por um punhado de forasteiros’
A democracia foi a estrela da festa (virtual) organizada pelo governo norte-americano nos dias 9 e 10 de dezembro passado. Na Cúpula da Democracia, mais de cem países manifestaram seu compromisso com ela no presente e para o futuro.
Ocorre que, um pouco antes, no dia 4, a democracia era saudada em outro lugar do mundo. Foi nesse dia que as autoridades chinesas, que não foram convidadas para a Cúpula da Democracia, divulgaram um relatório com o sugestivo título China: democracia que funciona.
O relatório começa na defensiva, afirmando que a pergunta sobre o caráter democrático de um país deve ser respondida por seu povo, e “não ditada por um punhado de forasteiros”, pois, afinal, “não há um modelo fixo de democracia; ela se manifesta em muitas formas”.
Antidemocrático seria, sim, “avaliar a miríade de sistemas políticos no mundo com base num único critério”. Ainda mais no caso da China, que teria feito inúmeras tentativas de adotar sistemas políticos ocidentais, incluindo o sistema multipartidário, “tendo todos terminado em fracasso”.
Os direitos humanos são citados duas vezes no relatório: “Na China, os direitos humanos são inteiramente respeitados e protegidos. Viver uma vida de satisfação é o direito humano fundamental”. Os ativistas pró-democracia de Hong Kong e a minoria muçulmana de Xinjiang certamente discordam.
No relatório, a liderança do Partido Comunista é tida como “garantia fundamental” da democracia chinesa, já que “não é tarefa fácil para um país grande como a China representar e encaminhar plenamente os interesses de 1,4 bilhão de pessoas. Ela deve ter uma liderança robusta e centralizada”.
Essa centralização do governo pelo Partido Comunista é enfatizada no relatório; ela é condicionante dos processos de eleição e consulta popular, que devem ser guiados por lideranças “leais ao marxismo, ao Partido e ao povo”. Mais especificamente, “a natureza fundamental do Estado é definida pela ditadura democrática do povo”.
Essa união de democracia e ditadura salta aos olhos. Entre nós, democracia e ditadura se contrapõem, particularmente no valor atribuído a uma e outra: em geral, a democracia é avaliada positivamente; a ditadura, negativamente.
É verdade que, em seu sentido antigo, a ditadura tinha uma conotação positiva. Na Antiguidade clássica, o dictator romano era nomeado em circunstâncias excepcionais, como uma guerra, e seus poderes extraordinários não só eram legalmente previstos, como tinham a duração do dever que lhe fora confiado.
Na era moderna, o conceito de ditadura foi estendido ao poder instaurador de uma ordem nova. Nesse sentido revolucionário, a ditadura adquiriu uma conotação negativa com o tempo. Hoje, ela é expressão de um poder exercido de forma mais extensa, alcançando todas as funções do Estado, e não só individualmente (como o ditador romano). E o mais importante: ela é entendida como um modo de exercício do poder oposto ao da democracia.
A “ditadura democrática” chinesa se conforma por meio de um poder que é concretamente exercido por um partido só, o Comunista. E esse partido cuidaria de assegurar os interesses do povo chinês no citado propósito de “garantir a condição do povo de senhor do país”.
Mas esse povo é de 1,4 bilhão de pessoas, e obviamente não há como os diferentes interesses, visões e projetos delas serem democraticamente representados por um único partido. Apesar disso, lê-se no relatório que, “na China, não há partidos de oposição”, como se isso fosse uma vantagem.
É certo que a democracia é um sistema que exige interrogação contínua e que a China tem suas especificidades históricas, culturais e institucionais. Mas é preciso um contorcionismo intelectual e moral para sustentar que a ditadura chinesa é “democrática”, como faz o tirânico Partido único, ou então renunciar à razão, como fez recentemente a ex-presidente Dilma Rousseff, para declarar que a China “representa uma luz nessa situação de absoluta decadência e escuridão que é atravessada pelas sociedades ocidentais”.
O Estado de São Paulo