O movimento do funcionalismo, impulsionado por uma jogada eleitoreira do presidente da República, vai na contramão dos esforços para evitar a indexação da economia
O brasileiro começa o ano de 2022 com mais uma lamentável notícia produzida em Brasília: empresas e pessoas físicas, que enfrentam diariamente o enorme emaranhado burocrático imposto pelo Estado para produzir, trabalhar e acessar serviços públicos, conviverão com mais uma ameaça de paralisações do funcionalismo.
O movimento deve ter início já em janeiro. Na semana passada, o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) aprovou um calendário de mobilização em defesa de um reajuste salarial. As duas primeiras semanas do mês que se inicia servirão para as corporações levarem demandas às autoridades competentes, enquanto pressionam a equipe econômica e convocam as assembleias de cada categoria. Neste meio tempo, servidores em funções de confiança devem continuar entregando os cargos. Paralisações são esperadas, até que eles deliberem sobre uma possível greve geral a partir de fevereiro.
A mobilização não é desprezível. Tal entidade reúne 37 instituições associativas e sindicais de carreiras típicas de Estado, como do Banco Central (BC), Tesouro Nacional, Receita Federal, analistas de comércio exterior e diplomatas. Juntas, representam cerca de 200 mil servidores públicos, os quais formam o que pode se considerar a elite do funcionalismo público. Não bastasse, servidores do Judiciário e magistrados também começam a se movimentar no mesmo sentido.
É preciso reconhecer: em parte, a insatisfação desse seleto grupo é legítima. Trata-se de uma resposta à sinalização, feita pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, de que apenas carreiras policiais, base eleitoral do chefe do Executivo, receberão aumento neste ano. O Congresso Nacional aprovou o Orçamento de 2022 com a previsão de R$ 1,7 bilhão para reajustes, mas sem especificar quais carreiras seriam contempladas. Decidiu não entrar na polêmica.
A conta, contudo, inevitavelmente recairá sobre a sociedade como um todo. Ao jornal “O Globo”, por exemplo, um representante dos auditores fiscais da Receita Federal disse que a operação-padrão da categoria no porto de Santos, o maior da América Latina, deve resultar em uma perda de R$ 125 milhões por dia na arrecadação com impostos do comércio exterior. Do ponto de vista de quem empreende, a informação mais chocante é que o tempo para a liberação de contêineres de importação pode passar a ser de 24 a 48 horas. O trâmite costuma ocorrer em uma hora.
Além da insatisfação com o tratamento dado pelo presidente aos policiais, as categorias que agora se mobilizam também reclamam da falta de uma política remuneratória do governo federal. Elas argumentam que grande parte dos servidores federais está com remuneração congelada desde 2017, acumulando, desde então, perdas inflacionárias medidas pelo IPCA de 27,2%. Ignoram o fato de que o governo federal precisou ampliar gastos para combater a pandemia e seus efeitos na economia, num momento em que os servidores permaneceram protegidos por uma estabilidade que não alcançou os demais trabalhadores que estão fora do serviço público. Isso não é pouca coisa num país em que ainda há aproximadamente 13 milhões de trabalhadores em busca de um emprego e, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda média atingiu o menor nível (R$ 2.449) de toda a série histórica iniciada em 2012.
Deve-se recordar ainda que as corporações deixaram outro legado negativo para o ano que se inicia, ao terem sido bem-sucedidas em suas investidas para frear a tramitação da reforma administrativa no Congresso Nacional. A proposta de emenda constitucional começou com um texto elogiável, mas devido às pressões acabou ganhando um formato inaceitável: em vez de corrigir injustiças, a proposta mantinha privilégios. Em outras palavras, aumentava a capacidade do setor público brasileiro de gerar desigualdades.
Neste sentido, deve-se dar atenção aos alertas da equipe econômica de que o pleito do funcionalismo traz consigo um risco inflacionário que não deve ser desprezado, até porque existe o receio de que o mesmo ocorra nos Estados. O movimento do funcionalismo, impulsionado por uma jogada eleitoreira do presidente da República, vai na contramão dos necessários esforços para evitar a indexação da economia.
Valor Econômico