O triunfo da democracia depende da disposição dos cidadãos e das instituições de defendê-la de ataques cada vez mais desabridos
Há um ano, milhões de pessoas no mundo inteiro assistiram atônitas ao que até então era impensável. No dia 6 de janeiro de 2021, uma turba de vândalos, inconformados com o resultado da eleição presidencial norte-americana, tomou de assalto o Capitólio, sede do Poder Legislativo dos Estados Unidos, para impedir a certificação da vitória do democrata Joe Biden.
Cinco pessoas morreram e centenas ficaram feridas naquele fatídico dia. Congressistas e seus auxiliares tiveram de construir barricadas com o que tinham à disposição e se trancar em seus gabinetes para escapar da fúria dos insurgentes. Um grupo deles chegou a levar uma forca para o Congresso com a intenção de matar o então vice-presidente Mike Pence, presidente da sessão do Congresso que, ao final daquele mesmo dia, acabou por cumprir a Constituição e certificar a eleição de Biden como o 46.º presidente dos Estados Unidos.
Em discurso para marcar o primeiro ano do infame ataque ao Capitólio, Biden afirmou que a insurgência “não representou a morte da democracia”, mas, antes, “o renascimento da liberdade” em seu país. No entanto, o presidente americano ressaltou que, a despeito da gravidade do ataque à União, o mais grave desde a Guerra Civil Americana (1861-1865), “a democracia venceu” graças ao sacrifício dos que se dispuseram a defendê-la no momento mais dramático da história americana em muito tempo. Esta talvez seja a principal lição que pode ser aprendida com o trágico evento de um ano atrás.
A democracia, nos Estados Unidos ou em qualquer país, não prevalece por si só, não se sustenta apenas pela força de suas muitas virtudes. O triunfo do regime democrático depende fundamentalmente da disposição do povo e das instituições do Estado em defende-lo todos os dias contra ataques cada vez mais desabridos. Nos Estados Unidos, a ameaça à democracia não foi de todo dissipada. “Se não formos vigilantes, a democracia não se sustenta”, disse Biden, alertando para a divisão dos americanos e para a conversão de segmento majoritário do Partido Republicano em uma seita antidemocracia sob o comando de Trump.
Biden responsabilizou diretamente seu antecessor não só por ter incitado a sedição, mas por continuar a minar a confiança de parcela da sociedade americana no processo eleitoral de seu país. Trump, disse Biden, “criou uma rede de mentiras” para desacreditar o resultado do pleito, sem apresentar um indício de prova que consubstancie suas alegações. Não são poucos os americanos que ainda hoje acreditam que Biden seja um presidente “ilegítimo”, mesmo contra a lógica e todos os fatos que apontam exatamente o contrário.
Tudo não passa de um discurso falacioso, contra o qual os únicos antídotos, lá ou cá, são o jornalismo profissional e independente, o espírito público de servidores leais à Constituição e a responsabilidade individual dos cidadãos.
As mentiras de Trump, que levaram à tentativa de golpe e ainda hoje contaminam o debate público em seu país, ecoam no Brasil. Sentado no Palácio do Planalto está um dos mais notórios imitadores do bufão americano. O presidente Jair Bolsonaro responde a inquéritos na Justiça por disseminar mentiras sobre a segurança das urnas eletrônicas. Dado seu comportamento indigno na Presidência, é difícil imaginar uma pacífica transferência de poder a um sucessor caso Bolsonaro seja derrotado na eleição de outubro.
É importante lembrar que Bolsonaro já ameaçou a Nação ao sustentar que a eleição americana “foi fraudada” e que, “se tiver voto eletrônico no Brasil em 2022, vai ser a mesma coisa lá dos Estados Unidos” (sic), referindo-se à invasão do Capitólio. Bolsonaro é alguém que ascendeu politicamente incitando a baderna institucional. Como militar, não respeitou a disciplina nem a hierarquia do Exército Brasileiro. Portanto, não há razões para acreditar que ele haveria de se comportar como estadista em caso de derrota. Todo cuidado é pouco.
As instituições devem estar vigilantes e agir para levar à Justiça todos que se levantarem contra a Constituição do País. “Não se defende o império das leis apenas quando é conveniente”, advertiu Biden. O alerta está dado.
O Estado de São Paulo