Publicado em 23 de março de 2021 por Tribuna da Internet
Carolina Brígido e André de Souza
O Globo
Por três votos a dois, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que o ex-juiz da Lava-Jato Sergio Moro foi parcial na condução do processo do tríplex do Guarujá (SP), que resultou na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em outra decisão, o ministro Edson Fachin, relator dos processos da operação no STF, já havia anulado as decisões tomadas por Moro nos processos envolvendo Lula. Mas o julgamento de hoje é importante, porque pode implicar em outras anulações da Lava-Jato no longo prazo.
SUSPEIÇÃO LIMITADA – Em seu voto, porém, a ministra Cármen Lúcia, que mudou de lado, tentou afastar essa possibilidade. Em 2018, ela havia votado para rejeitar o pedido de Lula. Nesta terça-feira, concordou com a defesa do ex-presidente.
— Estamos julgando um habeas corpus de um paciente que comprovou estar numa situação específica. Não acho que o procedimento se estenda a quem quer que seja, que a imparcialidade se estenda a quem quer que seja, ou atinja outros procedimentos. Porque aqui estou tomando em consideração algo que foi comprovado pelo impetrante relativo a este paciente [Lula], nesta condição. Essa peculiar e exclusiva situação do paciente neste habeas corpus faz com que eu me atenha a este julgamento, a esta singular condição demonstrada relativamente ao comportamento do juiz processante em relação a este paciente — disse Cármen.
Em dezembro de 2018, Fachin e Cármen Lúcia haviam votado para declarar Moro imparcial, rejeitando o pedido da defesa de Lula. Há duas semanas, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votaram de forma contrária, para anular o processo do tríplex por entender que o ex-juiz foi parcial.
MUDOU DE LADO – Nesta terça-feira, Nunes Marques votou com Fachin, mas Cármen Lúcia mudou de lado, sacramentando a vitória de Lula e a derrota de Moro. Ela destacou que estava aberta a mudar o voto, uma vez que o julgamento não tinha terminado ainda.
A ministra avaliou que houve prejuízo ao direito de defesa. Entre outros pontos, ela destacou condução coercitiva de Lula sem prévio interrogatório, interceptação telefônica “ao arrepio da lei” antes de adotar outras medidas, e divulgação seletiva de áudio da gravação.
— Neste caso o que se discute basicamente é algo que pra mim é basilar, que está na pauta desde o primeiro momento, foi mudando o contorno, o cenário e a compreensão do que se tinha — disse Cármen.
COMBATE À CORRUPÇÃO – A ministra também ressaltou que o combate à corrupção tem que continuar: “Não estou emitindo juízo no voto sobre o combate a corrupção, que não pode de jeito nenhum parar”.
“Todo mundo tem o direito de acreditar-se julgado por uma contingência do Estado, e não por um voluntarismo de um determinado juiz ou tribunal” — acrescentou.
Antes de Cármen Lúcia, o ministro Kassio Nunes Marques votou para declarar que Moro foi imparcial na condução do processo de Lula, que apontou questões processuais para rejeitar o pedido da defesa. Os advogados de Lula apresentaram um habeas corpus e usaram como argumentos diversas condutas de Moro durante o processo.
RECURSO INADEQUADO — “O habeas corpus não é remédio adequado para que avalie a suspeição de um juiz, neste sentido já decidiu este tribunal em inúmeros precedentes. A causa da suspeição deve ser exterior ao processo. As noções de diálogos relacionados à tramitação da própria causa judicial ou de causas similares não devem, em princípio, gerar suspeição” — disse Nunes Marques.
Ele também desconsiderou as mensagens trocadas entre Moro e procuradores da Lava-Jato, obtidas por hackers e depois divulgadas na imprensa, que mostram o ex-juiz orientando a acusação.
“Se o hackeamento fosse tolerado como meio para obtenção de provas, ainda para defender-se, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade, de seus bens e de sua liberdade. Tudo seria permitido. São arquivos obtidos por hackers, mediante a violação dos sigilos ilícitos de dezenas de pessoas. Tenho que são absolutamente inaceitáveis tais provas. Entender-se de forma diversas, que resultados de tais crimes seriam utilizáveis, seria uma forma transversa de legalizar a atividade hacker no Brasil” — disse Nunes Marques.
PROVAS INCONTESTES – “Notícias veiculadas em matérias jornalísticas não são provas incontestes, não estão nos autos, não se tem como verificar sua veracidade apenas com base nelas mesmos. Sobre os fatos não se pronunciou a acusação, o MPF aqui atua apenas como fiscal da lei, e nem o juiz contra o qual se arguiu a suspeição, mesmo porque não há neste espaço admiti-lo”, destacou Nunes Marques.
O novo ministro ressalvou ainda que não há como aproveitar os diálogos hackeados nem atestar que não foram alterados. “Está registrada nos anais desta Corte a célebre a acertada frase dita pelo ministro Gilmar Mendes: não se combate crime cometendo crime. Não podemos errar, como se supõe que errou o ex-juiz Sergio Moro, como se supõe que erraram os membros do MPF. seria uma grande ironia e o prenúncio de um looping infinito de ilegalidades aceitarmos provas ilícitas resultantes de um crime, para comprovar um suposto crime praticado para apurar outro crime. Dois erros não fazem um acerto”, disse, emparedando Gilmar Mendes.
“NEM NO PIAUÍ” – Em seguida, o ministro Gilmar Mendes, que já havia votado, pediu a palavra para demonstrar revolta com o voto do ministro Kassio Nunes Marques, que foi contra declarar a parcialidade de Moro: “Isso tem a ver com garantismo? Nem aqui nem no Piauí, ministro Kassio” — disse Gilmar.
O ministro rebateu alguns argumentos de Nunes Marques, sustentando, por exemplo, que um habeas corpus serve sim como instrumento de revisão criminal. Sobre a possível alteração do teor das mensagens de Moro obtidas por um hacker, Gilmar disse:
— Não houve ninguém até agora capaz de dizer que houve um dado falso nessas revelações. O meu voto, me faça justiça, está calcado nos elementos dos autos! Agora realmente me choca tudo aquilo que se revela, e a defesa que se faz: “Ah, pode ter havido inserções, manipulações?”. Eu já disse aqui ou o hacker é um ficcionista ou nós estamos diante de um grande escândalo, e não importa o resultado deste julgamento, a desmoralização da Justiça já ocorreu, o tribunal de Curitiba é conhecido mundialmente como um tribunal de exceção. Não precisa de rescisória, a desmoralização já ocorreu, porque ninguém é capaz de dizer.
GILMAR PERDE A LINHA – De forma exaltada, Gilmar Mendes iundagou: “Algum dos senhores compraria hoje um carro do Moro? Algum dos senhores seria capaz de comprar um carro do Dallagnol? Sao pessoas probas?” — questionou.
No auge da crítica a Nunes Marques, Mendes disse: “Não se trata de ficar brincando de não conhecer habeas corpus. É muito fácil não conhecer um habeas corpus. Atrás, muitas vezes, da técnica de não conhecimento de habeas corpus, se esconde um covarde. E Rui (Barbosa) falava: o bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde”.
Depois de cerca de uma hora e quarenta minutos do voto de Gilmar Mendes, que já tinha votado há duas semanas, Kassio Nunes Marques pediu a palavra para se defender de acusações feitas pelo colega.
“PROFESSSOR DE DEUS” — “Eu não falo muito, porque não gosto muito da minha própria voz. Não vou fazer réplicas, tréplicas, expus minhas ideias com solar clareza. Meu contributo é com o silêncio. Esse silêncio é em homenagem e respeito aos votos divergentes, àqueles que pensam de forma diferente. E, se eu dissesse que tivesse algo a ensinar aos senhores, me iriam chamar de professor de Deus” — alfinetou Nunes Marques.
O novo ministro também protestou contra a fala de Mendes sobre o Piauí, estado natal de Nunes Marques:
— Quando vossa excelência diz que o garantismo não é nem aqui, nem no Piauí, pode ser interpretado como uma forma de menosprezar um estado pequeno. Queria fazer esse registro e apresentar escusa se eventualmente no meu voto ofendi a forma de pensar dos senhores, apenas retratei a minha forma de pensar.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – O ministro Gilmar Mendes foi o que é – grosseiro, parcial e sem educação. E o ministro Nunes Marques surpreendeu ao demonstrar gentileza, imparcialidade e educação. Ao final, fez questão de pedir a palavra para dar uma lição de civilidade a Gilmar Mendes, como um tapa piauiense naquela cara larga e beiçuda. E vida que segue, como dizia nosso amigo João Saldanha, uma pessoa de brio, que o Brasil precisa sempre lembrar. (C.N.)