Ricardo CorrêaO Tempo
Nas últimas semanas aumentou a divulgação de uma tese absurda de que a Constituição Federal permitiria, no artigo 142, uma intervenção militar comandada pelo presidente da República. A tese, rejeitada por 99% dos constitucionalistas brasileiros – e encampada apenas por Ives Gandra, que nutre enorme proximidade ideológica com o governo – foi novamente levantada após o procurador geral da República, Augusto Aras, em um comentário no mínimo atrapalhado, ter citado essa hipótese.
Foi necessário, inclusive, que o chefe do Ministério Público Federal (MPF) divulgasse uma nota afirmando que o que disse em entrevista na TV não era o que pensava. Claro, a Constituição Federal não autoriza, em nenhum artigo, a intervenção militar de um Poder em outro.
DE FORMA ALGUMA – Aliás, a Constituição não fala em intervenção militar em nenhum artigo. De nenhuma hipótese. Tem-se apenas a figura da intervenção federal em Estados e municípios (do art. 34 em diante), por solicitação dos Poderes da União. O que nada tem a ver com intervenção militar.
Mas e o artigo 142? Vale reproduzi-lo:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Como se vê, o artigo em questão não fala nem em intervenção nem trata de separação ou relação entre os Poderes. Versa apenas sobre o funcionamento das Forças Armadas. Inclusive nos seus parágrafos, como pode perceber quem fizer uma leitura rápida da Constituição.
ALEGAÇÃO SEM BASE – Então, por qual motivo aliados do governo citam este como um texto que levanta hipótese sobre intervenção militar? Apenas pelos trechos que dizem que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do presidente e destinam-se “à garantia dos poderes constitucionais”.
Veja como é absurda a interpretação de que isso permitiria uma intervenção. O que são os poderes constitucionais senão o cumprimento do que está na Constituição? Então, basta olhar o que está escrito nos demais artigos para ver que uma intervenção não se encaixaria na lógica de nosso arcabouço constitucional.
Vejamos o artigo 85, por exemplo, que trata dos crimes de responsabilidade do presidente. Diz este artigo que é crime de responsabilidade o ato do chefe do Executivo que atente contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.
LEITURA EQUIVOCADA – Portanto, se aceitássemos a ideia de que o artigo 142 permite a intervenção militar do chefe do Executivo em outro Poder, estaríamos dizendo que a Constituição autorizaria que o presidente interferisse em outro Poder com a ajuda das Forças Armadas e que, em consequência, ele deveria ser derrubado por isso. Afinal, crime de responsabilidade leva a impeachment. Faz algum sentido? Óbvio que não.
Além do mais, ainda que o artigo 142 permitisse a intervenção, como isso poderia se dar? Tirando ministros do Supremo? Mas isso desrespeitaria o artigo 95, que trata da vitaliciedade dos juízes. E feriria os artigos sobre a composição do Supremo também. De modo que uma intervenção, ao contrariar normas da própria Constituição, nunca poderia ser tida como “garantia aos poderes constitucionais”.
DESONESTIDADE INTELECTUAL – Por fim, é bom dizer que a interpretação constitucional também deve levar em consideração a vontade do constituinte. O que pretendia o Constituinte quando aprovou a Constituição de 1988 após décadas de ditadura militar?
Quem achar que o objetivo era preservar medidas autoritárias como a interferência do presidente no funcionamento dos demais Poderes obviamente estará usando de desonestidade intelectual. A tese de que o artigo 142 autoriza uma intervenção militar, portanto, é balela.