Governanças na Antiguidade: mesopotâmica, egípcia e grega. Análise das estruturas sociais, políticas e teológicas e valores econômicos.
O moderno Estado-nação não existia durante a Antiguidade. As formas estatais então predominantes eram as da cidade-estado, restrito a um povo, e do império, que organizava em pletora de povos a partir de uma autoridade central.
Naturalmente, houve múltiplas constituições e governanças, como analisadas por Aristóteles, no Livro II de A Política. Coexistiram democracias, oligarquias, monarquias, aristocracias e vários tipos de formas mistas, bem como impérios marítimos e telúricos.
Em todas elas, a economia não ocupava a posição central que as atuais governanças lhe conferem. Ainda que a produção e a distribuição dos bens materiais e financeiros constituíssem questão estratégica dos soberanos, tanto mais porque serviam de suporte material para o exercício do poder, elas não eram entendidas à parte dos aspectos políticos e religiosos, que se manifestavam de forma invariavelmente unificada, já que não se concebia a separação entre a polis e os deuses, entre os assuntos de Estado e os assuntos divinos.
Não existiam as noções correlacionadas de economia, de mercado e de sociedade civil, enquanto instâncias apolíticas e seculares definidas pela interação dos interesses utilitários privados. No máximo, havia a ideia grega de “economia doméstica” para designar os assuntos do lar, inclusive os de ordem comportamental e sentimental, de pouca ou nenhuma valia até mesmo para o que hoje chamamos de economia doméstica, quanto mais de economia. Os aspectos hoje chamados de econômicos faziam parte da administração pública e das artes religiosas, não como domínios separados, mas como técnicas do poder e da religião.
Desse modo, as governanças não tinham por objetivo último elevar o produto interno e ampliar a capacidade média de consumo, mas equilibrar as forças sociais em torno do poder central e zelar pela vivência coletiva do sagrado. A administração dos recursos materiais e financeiros era entendida como instrumento de realização de valores extra-econômicos.
Abordemos sucintamente três das grandes civilizações: a mesopotâmica, a egípcia e a grega.
Mesopotâmia
A civilização mesopotâmica, que ocupava área equivalente, em linhas gerais, ao atual Iraque, inicia-se com os sumérios, a primeira civilização que se tem registro. Os sumérios desenvolveram a escrita e, consequentemente, religião e cultura unificadas e próprias, assumindo identidade específica e diferenciada.
A integração de diversas aldeias em cidades-estados organizadas em torno do templo principal, por sua vez, permitiu aos sumérios criar e administrar arrojados sistemas de irrigação e plantio, sustentando materialmente a civilização.
Cada cidade-estado pertencia a uma divindade e por ela era governada. Toda a organização social fazia parte de um complexo cósmico; a ordem, informada pela religião, era uma necessidade sagrada. O Estado político refletia a hierarquia cósmica regida pelo deus Anu. Como afirmou Hélio Jaguaribe, “O Estado como um todo estava a serviço político de seu deus, na qualidade de membro oficial do Estado cósmico” (Um Estudo Crítico da História, I, 2002).
A administração da economia e da sociedade era voltada a cumprir os desígnios religiosos, de modo que a governança se revestia de sentido teológico e absoluto. A sacralização da cidade também era a do governo. O mando e a obediência inscreviam-se no domínio cósmico, de modo que a rebeldia e a desobediência eram não apenas faltas morais e civis, mas a negação do ser.
A partir dessa configuração, os sumérios forneceram a estrutura básica de toda a civilização mesopotâmica. A eles se fundiriam os acadianos, gerando a civilização sumério-acadiana, que, por sua vez, se desdobrou em duas, a babilônica e a assíria.
Enquanto a Babilônia obteve protagonismo econômico e cultural, tornando-se o maior centro cosmopolita da época, a Assíria destacou-se no âmbito militar, buscando subjugar pelas armas os demais povos. Não se pode ignorar a força militar da Babilônia e a pujança econômica e cultural da Assíria, porém esses não foram seus fatores determinantes.
Embora bastante avançadas em seu tempo, nem a Babilônia e a Assíria conseguiram firmar seus impérios, pois não conseguiram alcançar o sentido universal de ordem política, próprio do império, limitando-se às características e realidades das suas respectivas cidades-estados. Enquanto a dominação assíria degenerou em brutalidade e extermínio, a Babilônia se desorganizou internamente, com as recorrentes tentativas de usurpação do trono e com a crescente separação entre o governo e as classes influentes, consequência da modernização e secularização políticas experimentadas pela Babilônia ao longo do tempo.
Enquanto a Assíria foi derrotada militarmente por uma coalizão liderada pelos babilônios, esses, posteriormente, foram conquistados pelos persas, dotados de sentido verdadeiramente universal de política e sociedade, consistindo em império no sentido profundo do termo.
Egito
A civilização egípcia, por sua vez, desenvolveu-se ao longo do curso do rio Nilo. Definiu-se em sucessivas etapas históricas – o Antigo Reino, o Médio Reino e o Novo Reino -, entremeadas por períodos de crise e indefinição que preparavam novos arranjos sociais e culturais que atualizavam as características civilizatórias básicas.
O principal fator de estabilidade da civilização egípcia foi a idealização do faraó como divindade, como filho de Horus. O faraó representava o elo do divino com o mundano, do cósmico com o histórico, e assim mantinha coeso todo o sistema social em sua cadeia hierárquica.
A ordem política refletia a ordem cósmica e conferia caráter sagrado às relações de mando e obediência, inscritas em ordenamento superior e transcendente. O sentido de imutabilidade se associou à concepção cíclica da história, na qual as mudanças eram apenas o movimento circular e perpétuo de um todo, que jamais se transformava.
Em torno do faraó se estabeleceu um corpo administrativo bastante sofisticado, composto de funcionários especializados. Havia quatro grandes departamentos administrativos: o Tesouro, a Agricultura, a Justiça e o Arquivo Real. O vizir, espécie de superministério, supervisionava os departamentos, o Exército e as administrações das províncias, chamadas “nomes”.
Toda a economia imperial estava subordinada ao faraó e, portanto, à ordem cósmica sagrada. Segundo Darcy Ribeiro, nos tempos de Ramsés III (1198-1167 a.C.), o poder estatal atuou como vastíssima empresa financiadora e administradora de enorme patrimônio produtivo. Contava com 750 mil acres de terras cultiváveis, 107 mil cativos engajados no trabalho, 500 mil cabeças de gado e uma frota de 88 navios, além de 53 fábricas e estaleiros.” (O Processo Civilizatório, 1972).
O peso da escravidão, contudo, foi exagerado pelo relato hebraico, pois, na realidade, não teve tanta importância como outras modalidades de trabalho, a exemplo da servidão e do recrutamento de camponeses livres, além de que os escravos contavam com proteções legais e podiam ser libertados. A sociedade egípcia era relativamente complexa, apresentando classes superiores, médias e inferiores.
As pirâmides evidenciam como a capacidade criadora dos egípcios foi colocada a serviço da sua visão religiosa, que era, também, visão social, política e econômica, uma vez que tudo que existia era sagrado.
Ainda assim, houve momentos de instabilidade, sobretudo em relação à distribuição do poder. Intercalavam-se períodos de centralização, quando o faraó fortalecia sua posição de comando e subordinava o funcionalismo público, e de descentralização, quando a debilidade do faraó permitia aos funcionários públicos converterem-se em nobreza hereditária e dividirem o seu poder, o que vulnerabilizava o império frente a ameaças estrangeiras.
Os sucessivos assaltos externos e usurpações dinásticas enfraqueceram a consciência do caráter divino do faraó, o que fraturou a ordem política e a fez perder sua coerência. O sistema egípcio, calcado na crença do faraó como deus, não resistiu à secularização e ao relativismo conseguintes às vicissitudes históricas. Desprovida da solidez do sagrado, a governança imperial egípcia ruiu.
Grécia
A Grécia Clássica, a seu turno, constituía uma constelação política dentro de uma unidade etnocultural. As diversas cidades-estados, caracterizadas por sistemas de governanças bastante díspares, eram manifestações diversas do mesmo povo, na ação político-administrativa, formado pela ancestralidade semelhante e comungante das mesmas crenças e deuses, ainda que cada cidade tivesse seu próprio deus protetor.
A polarização entre Atenas e Esparta tornou-se arquetípica e encontra ecos até a atualidade. A dicotomia entre sociedade aberta e sociedade fechada traduz, para a linguagem contemporânea, a dualidade de sistemas sociopolíticos entre Atenas e Esparta, respectivamente.
De um lado, a democrática Atenas, a “sociedade aberta”, fundada na igualdade dos cidadãos, coexistente com grandes desigualdades econômicas e no regime escravista privado.
A governança ateniense, calcada no livre debate público entre os cidadãos – entre os quais não se incluíam mulheres, crianças, escravos e estrangeiros -, logo se corrompeu com a sofística, levando Atenas ao declínio. A condenação capital de Sócrates, que se bateu contra os ardis e a manipulação reinantes, mostra o quão a democracia ateniense estava afastada da excelência ética e política.
De outro, a timocrática Esparta, a “sociedade fechada”, fundada na militarização social e na insignificância da propriedade particular, o que assegurou relativo nível de igualdade econômica, contrabalançada apenas pelo escravismo, de todo modo estatal, sem possibilidade de enriquecimento individual.
A governança espartana orientava-se sobremaneira para a guerra, que, por isso, ocupava posição de relevo no sistema educacional estatal. O ideal espartano era o da coragem militar, o que inibia os anseios individualistas por enriquecimento e autopromoção, comuns em Atenas. Serviu, pois, de modelo a distintos pensadores críticos dos modos mercantilistas de organização coletiva, a exemplo de Platão e Jean-Jacques Rousseau.
A Guerra do Peloponeso opôs Atenas e Esparta, com o triunfo da segunda sobre o mundo grego. A hegemonia espartana, contudo, fora precária e instável. A unificação política do mundo helênico se deu no século 4 a.C, com Filipe II da Macedônia, que conquistou as cidades-estados gregas com vista a preparar o ataque contra a Pérsia, que seria derrotada por seu filho Alexandre.
A Macedônia contava com sistema administrativo de alto nível, operado por aristocracia refinada e culturalmente elevada. O esplendor macedônico dos tempos de Filipe II ganhou alcance universal no reinado de Alexandre, que estendeu o helenismo ao oriente, levando-o até a Índia. Alexandre herdou do pai o respeito à autonomia e aos modos de vida dos povos conquistados, de modo a incorporá-los e não subjugá-los, em muitos casos até os ajudando a recuperar a identidade perdida. Não eram os povos, mas príncipes que ele submetia.
A grande inovação alexandrina consistiu em promover decididamente a miscigenação étnica e cultural dentro do império, de modo a fortificar e universalizar o helenismo em sua marcha orientalizante. Como afirmou um historiador, “Alexandre fundiu, em suas formas supremas, a ardente vitalidade da Grécia, que aspirava a encontrar um corpo, e as massas inertes da Ásia, que aspiravam a encontrar uma alma” (Johann Gustav Droysen, Alexandre o Grande, 2010).
Não seria o Brasil, império igualmente mestiço, continental e jovial, a Macedônia da modernidade? Não seríamos nós os herdeiros da missão de universalidade e integração dos povos outrora planteada por Alexandre?
Por Felipe Maruf Quintas - cientista político.
e Pedro Augusto Pinho - administrador aposentado.
Monitor Mercantil