Os Coletes Amarelos se transformaram num movimento político
Ramin MazaheriThe Vineyard of the Saker
Os Coletes Amarelos sem dúvida alcançaram afinal uma primeira vitória real contra o presidente Emmanuel Macron na semana passada, quando parlamentares da oposição surpreendentemente se uniram para votar a favor de se organizar um referendum que decida sobre a venda dos três aeroportos na área de Paris. Os RICs – Referendum de Iniciativa dos Cidadãos – à moda suíça – são a demanda estrutural democrática básica dos Coletes Amarelos. E o fato de que agora é possível que os cidadãos votem em referendum sobre a venda dos aeroportos franceses é, sem dúvida, resultado da agitação de rua.
A mídia francesa, sempre rabugenta, que odeia os Coletes Amarelos por eles se atreverem a questionar o direito de o Quarto Poder decidir a agenda que toda a sociedade seria obrigada a discutir, evidentemente não comemorou o que é vitória óbvia de todos que vivam sobre solo francês ou apenas passem voando por ali.
PATRIOTISMO – Muito me surpreendeu o renascimento do patriotismo, no bom sentido, econômico, da França. Na véspera da decisão, havia apenas uns 150 Coletes Amarelos em frente ao Senado, onde, naquele momento com certeza, a proposta de Macron para o desmanche dos aeroportos estava para ser aprovada. Ainda não se sabe se realmente acontecerá algum referendum, que seria pioneiro, mas é possível, sim, que apareça nas manchetes durante meses, empurrando enquanto isso, para as ruas, mais e mais franceses metidos em Coletes Amarelos.
A ideia de vender patrimônio do Estado aos mais ricos, já é vergonhosa até para quem não seja fanático obcecado contra qualquer democracia socialista, mas as táticas de Macron superaram todos os limites. Para começar, pôs toda a gangue dos servis travestidos de políticos na Assembleia Nacional a reescrever leis que permitissem desnacionalizar os aeroportos.
Os nomes orwellianos que se dão às leis francesas para as “deformas” que planejam são sempre cômicos. Nesse caso, a Lei se chama Plano de Ação para o Crescimento e Transformação de Empresas.
NA MADRUGADA – Em seguida, para evitar a imprensa e uma possível derrota, Macron convocou sessão de votação da lei para liquidar os aeroportos franceses, para as 6h15 da manhã [madrugada] do sábado, dia 16 de março. Deputados franceses trabalham em horas estranhas, sim, mas eu jamais tinha ouvido falar de sessão de votação às 6h da madrugada de um sábado. Só apareceram 45 dos 577 deputados que votam na Câmara baixa.
A mídia faixa branca fez o diabo para explicar que, sim, a votação foi legal. Ninguém cobriu a sessão – todos fomos enganados, eu inclusive. Ora bolas! Sou jornalista diurno. E não posso noticiar um evento dois dias depois de ele acontecer. Você mal dá conta de cobrir o dia, e logo já aparece mais um fato, ali, à sua espreita.
Depois, num movimento conectado a esse, mas conexão que nenhum veículo parece estar percebendo, Macron adiou a data da conclusão dessa campanha de Relações Públicas dissimulada sob o título de “Debate Nacional”, para desviar as atenções da votação no Senado.
NAS RUAS – Os Coletes Amarelos não se sentiram ofendidos, nem se incomodaram. Como já estava planejado, iniciaram ação massiva de desobediência civil na Avenida dos Champs-Elysées, um dia depois da data em que o Debate Nacional deveria ser concluído, dia 16 de março. Incendiaram até um banco. Acho justo registrar que fui o único a explicar adequadamente por quê.
E essa semana Macron revelou suas “conclusões” daqueles dois meses e meio de conversa fiada, que se resumem, essencialmente, à seguinte: “É reconfortante saber que sempre tive razão, desde o primeiro dia!” Claro que Macron contava com que a mídia se manteria focada na bobajada tecnocrática, e não dedicaria colunas inteiras à venda, em liquidação, dos aeroportos.
SURPRESA – Mas não contava com que deputados do partido de Macron se aliassem para o bem do país. Ou, de fato, para muitos, para o bem das respectivas campanhas de reeleição: a desnacionalização é tão impopular que ninguém pode sequer pronunciar o nome – sem ser imediatamente é atacado como vendilhão da pátria. Daí que falar mal de “privatização” – sobretudo se chamada de “desnacionalização” é garantia de atrair eleitores e votos.
Em resumo: é perfeitamente impossível acreditar no que diz Macron, que o único modo pelo qual o estado conseguirá 10 bilhões de euros para um “fundo de inovação industrial” é torrar os aeroportos de Paris (assim como as Loterias Francesas e a participação do estado francês na gigante Engie de energia).
RECORDANDO – A França já deu bilhões em cortes de impostos e isenções a empresas e negócios ao longo da Era da Austeridade [“Era do Arrocho”], sempre repetindo que o 1% investiria em fundos de inovação industrial que o próprio 1% proporia, e que não havia conexões com o Estado, nos programas de cortes.
Há também a evasão, que chega à casa de centenas de bilhões que o estado deixa de arrecadar… e que ninguém nunca mais verá, considerando que Macron quer cortar milhares de cargos no Ministério da Finança, o ministério cujo trabalho é arrecadar impostos.
Em resumo, a semana foi péssima para Macron: apenas 6% da França considerou um sucesso seu governo; e, pior que isso, os franceses absolutamente não engoliram a privatização que sua gangue de globalistas neoliberais amam acima de tudo.
SOCIALISMO? – Foi grande surpresa para mim, quando cheguei à França “socialista”, que já tivessem vendido todas as estradas do país. Hoje, quando um motorista paga 60 euros para dirigir de Paris a Marselha – só de ida! –, você quer pôr fogo na cabine de pedágio. Exatamente o que fizeram os Coletes Amarelos. Prestaram valioso serviço público.
Desnacionalizar o aeroporto terá o mesmo efeito caríssimo para o francês médio. Terá o mesmo efeito que o Reino Unido conheceu depois que as ferrovias foram desnacionalizadas: um ticket em alta temporada é hoje cinco vezes mais caro que no continente, e todos os serviços pioraram, a viagem demora mais tempo, é menos segura e menos confortável. Nos EUA leem-se manchetes como essa do ano passado, de St. Louis: Privatização de Lambert (aeroporto) é desastre semelhante ao do estacionamento em Chicago.
A França deve agradecer aos seus valentes Coletes Amarelos – que conseguiram impedir (pelo menos por enquanto), que o povo francês perca um dos aeroportos mais movimentados do mundo. Com certeza é vitória tangível, que calará os detratores do movimento, o que obrigará que se façam mudanças na agenda da mídia liberal-democrata hegemônica, e que pode ajudar os demais cidadãos franceses a se tornarem politicamente mais lúcidos e ilustrados.