Por : Salvatore D' Onofrio
“Democracia é quando eu mando em você,
Ditadura é quando você manda em mim” (Millôr Fernandes)
O termo “cidadania” vem do latim civitas (cidade), correspondente ao grego póleis (cidade-estado) e referente ao governo da res (coisa) publica, em oposição aos interesses particulares dos indivíduos. O político deveria administrar o orçamento de sua cidade, estado ou nação como o pai de família cuida da economia doméstica, regulando a despesa com o ganho. Mas, geralmente, isso não acontece porque o instinto egoísta do homem faz prevalecer a lei do mais forte, levando ao abuso do poder. Na s culturas antigas (as dinastias dos Faraós do Egito) ou primitivas (os pajés dos povos indígenas), os líderes, ídolos representativos de divindades, exercem um poder inquestionável e hereditário. Na Grécia primitiva, a cidade de Atenas era governada pelo Arconte (de arkhos = o dono do poder) .
Em oposição a esta forma de regime, o termo “anarquia” (de an = sem e arké = governo) foi usado para indicar uma concepção política e social de rejeição a qualquer tutela religiosa ou governamental. Como movimento ideológico, o anarquismo nasceu no séc. XIX, podendo ser considerado um corolário do Iluminismo e do Romantismo. A teoria política formulada por Pierre Joseph Proudhon se baseou nas idéias de John Locke: a sociedade, para este filósofo inglês, era o resultado de um contrato voluntário acordado entre indivíduos iguais em direito e deveres. O Estado deveria ser governado pela cooperação espontânea de todos os cidadãos, abolindo-se qualquer forma de patronato. O exemplo mais comezinho seria o de síndico de prédio: mandato gratuito, por pouco tempo e sem profissionalização. O exercício da política, semelhante ao sacerdócio, deveria ser visto como vocação e não meio de vida. Tal visão sociopolítica manteve relações complexas com socialismo, marxismo e liberalismo. Com o tempo, o termo “anárquico” adquiriu conotações depreciativas (desordem, bagunça), como aconteceu com outros adjetivos: cínico, maquiavélico, ateu, kafkiano. Mas seu espírito de revolta contra o autoritarismo político ou religioso sempre existiu, havendo precedentes e seguidores na história da cultura ocidental.
Já na Grécia antiga, o filósofo Platão se perguntava que democracia existia em Atenas que permitiu a condenação à morte do mestre Sócrates, o mais sábio e justo dos homens, acusado de perverter a juventude por questionar crenças religiosas. Este monstruoso crime contra a liberdade de pensamento é retratado ironicamente na peça As Nuvens, do comediógrafo Aristófanes, onde o personagem Sócrates exerce o papel de adepto do ceticismo, dialogando com um fazendeiro conservador. Na sua República , Platão propõe uma vida comunitária, dirigida pelo Estado. A escola filosófica do Cinismo (de kiné = cão) estimula a viver conforme a natureza, achando que as normas religiosas e éticas são hipócritas, afastando-nos da busca da felicidade.
O governo da Roma antiga passa da Monarquia (os sete Reis) para a República, institucionalizando dois partidos: democrático e aristocrático. Afirma-se, assim, pela eleição livre dos governantes, o direito de cidadania. Mas os benefícios sociais ficam como prerrogativas das classes dominantes (senadores e cavaleiros), oferecendo à plebe apenas o panem et circenses (bolsa família e futebol, de hoje). Os povos vencidos militarmente eram considerados escravos, provocando convulsões sociais: lembramos a revolta do gladiador Spartacus, em 70 a .C.
Também a pregação do amor entre os homens, conforme o evangelho de Jesus , não conseguiu superar as barreiras da ignorância, do ódio e do egoísmo. E sua condenação à morte na cruz foi decretada não pelo governo de Roma, mas pelo povo da Palestina, insuflado pela inveja dos sacerdotes fariseus. Como é fácil manobrar as massas ignorantes e necessitadas! O Cristianismo, três séculos depois, a partir da época de Constantino, começou a dominar o mundo, substituindo a ditadura imperial pelo autoritarismo papal. Durante quase um milênio da Idade Média, a Europa viveu no mais absoluto obscurantismo, pois os dogmas da religião católica, alicerçados na presumida infalibilidade do Papa de Roma, impediram o progresso da filosofia, das ciências e das artes. O domínio religioso só começa a ceder a partir da Renascença, quando as grandes navegações levam à descoberta de novos mundos, que provocam a revolução comercial que, por sua vez, estimula a revolução industrial. O Iluminismo gera a Revolução Francesa (1789) e o Capitalismo provoca o nascimento do seu antídoto, o Comunismo , iniciado pela revolução bolchevique, em 1917. Após a Primeira Guerra Mundial surgem o nazismo na Alemanha e o Fascismo na Itália, que levam à Segunda Grande Guerra, que termina com o bombardeio atômico das cidades japonesas de Hiroxima e Nagasaki, em 1945, a suma vergonha da humanidade, junto com o holocausto dos judeus.
Na modernidade, os horrores das duas Guerras Mundiais, seguidas da guerra fria e da corrida bélica e espacial entre o capitalismo dos USA e o comunismo da URSS, aumentaram a descrença nos ideais de paz e de justiça entre os povos. O assassinato de Martin Luther King foi o estopim da insurreição dos jovens contra o racismo, a Guerra do Vietnã, as autoridades constituídas. O ano de 1968 passou à história por vários acontecimentos tristemente memoráveis. Na década de 60, o movimento hippie surgiu como tentativa de uma transformação radical da sociedade, apresentando uma contracultura, uma nova filosofia de vida com base na liberdade, na paz e no amor. Houve slogans bonitos, mas o movimento não teve sucesso porque faltou acrescentar o ideal do trabalho, da meritocracia.
Com o fracasso do regime comunista, que levou ao desmembramento da União Soviética e à queda do muro de Berlim (1989), o choque de civilizações se concentrou entre o Ocidente judaico-cristão e o Oriente muçulmano. No dia 11 de setembro de 2001, o terrorismo islâmico derrubou as Torres Gêmeas de Nova York, assustando o mundo civilizado. O espantoso ataque suicida era o cumprimento de uma fatwa (ordem religiosa) emitida por Osama bin Laden, chefe da Al-Qaeda (rede terrorista), como represália contra o apoio militar dos EUA a Israel, a agressão ao povo do Iraque, a intervenção do capitalismo ocidental no Oriente Médio árabe.
Somente a infinita estupidez humana pode explicar o apoio popular a tiranos sanguinários, tipo Hitler, Stalin, Saddam Hussein, George W. Bush, Fidel Castro e caterva. Como afirmou o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “desgraçado o povo que necessita de heróis”. Meu sonho é a existência de uma futura democracia de onde sejam banidos os líderes políticos e os fanáticos religiosos. A meu ver, a construção de um protótipo de cidadania anárquica já começou nos países mais desenvolvidos do Norte da Europa. Pouca gente sabe quem é o chefe do governo da Suécia, Noruega ou Dinamarca, porque tais nações são administradas por técnicos concursados, que não devem favores a chefões políticos de plantão. Na atual conjuntura brasileira, que adianta mudarmos o Presidente se quem faz as leis é o Congresso Nacional, que só legifera em causa própria? Urge editar uma nova Carta Magna , redigida não pelos políticos, mas pela sociedade civil, por gente representativa das várias categorias profissionais, por constituintes que jurem nunca ocupar cargos públicos. Hoje em dia, um movimento de esclarecimento da massa popular se torna possível graças aos recursos da Internet .
Salvatore D' Onofrio
Dr. pela USP e Professor Titular pela UNESP
Autor do Dicionário de Cultura Básica (Publit)
Literatura Ocidental e Forma e Sentido do Texto Literário (Ática)
Pensar é preciso e Pesquisando (Editorama)
www.salvatoredonofrio.com.br
Fonte: ABDIC