Lula terá de delinear, antes da posse, um plano viável de como se movimentar no terreno movediço no Congresso
Por pouco mais de 2,1 milhões de votos à frente do presidente Jair Bolsonaro, na mais apertada eleição desde a redemocratização, o ex-presidente Lula voltará a governar o Brasil. Será missão mais difícil do que quando pisou pela primeira vez no Palácio do Planalto. O resultado final das urnas (50,9% ante 49,1% do rival) acentuou o desenho que as pesquisas eleitorais vinham traçando desde janeiro: o país está politicamente dividido ao meio.
Bolsonaro reduziu a diferença entre ele e Lula de 6,3 milhões de votos para um terço disso. Os três maiores colégios eleitorais, São Paulo, Minas e Rio, serão comandados por aliados. A vitória tranquila de seu ex-ministro Tarcísio de Freitas (55,2% contra 44,7%) no Estado mais rico realçou sua força eleitoral no Sudeste. Mesmo assim, o número de eleitores que viram em sua reeleição uma ameaça maior e urgente à continuidade da democracia, e engrossou o caudal de votos arrastados pelo ex-presidente Lula, foi maior. Está perto do fim o mandato de um dos presidentes mais controversos que o Brasil já teve.
O fato de a ameaça de reeleição de Bolsonaro ter sido rejeitada pelas urnas não torna a tarefa de governar mais fácil a partir de 1º de janeiro. Ao contrário, Lula terá de usar do máximo de sua capacidade, e no menor tempo possível, para agregar lideranças partidárias e apoios parlamentares de todas as forças políticas que possam colaborar para aprovação de um projeto coloque o país na rota do crescimento sustentável.
É importante que, encerrada a eleição, o presidente Jair Bolsonaro promova uma transição transparente, ordeira e pacífica. Há dúvidas sobre isso porque Bolsonaro governou abusando do sigilo, o orçamento secreto do qual se beneficia é o contrário de transparente, e o presidente demonstrou que moderação não é uma de suas qualidades.
Lula tem inegáveis dons para apaziguar ânimos e formar maiorias que permitam governar com alguma serenidade e eficiência. Sua grande capacidade de negociação e articulação revelou-se mais uma vez na forma com que montou, antes do primeiro turno, seu arco de alianças. Com o apoio de líderes tradicionais do MDB, obteve o apoio de que precisava para os palanques do Nordeste, onde garantiu vantagem abissal sobre Bolsonaro. Da mesma forma, candidatos regionais de partidos do Centrão esconderam seu candidato para apoiar Lula onde lhes fosse conveniente.
O presidente eleito terá de encaminhar soluções para intricados desafios antes da posse, o que sugere que terá de fazer uma composição política que se reflita já na formação de seu ministério em um governo que irá, segundo ele, além do PT.
A primeira batalha do novo governo, e uma das mais difíceis, será adequar o orçamento à realidade. Ele envolverá uma nova relação entre o Executivo e o Congresso, depois que Bolsonaro deu autonomia ao Centrão, que garantiu R$ 19,6 bilhões para seu orçamento secreto, enquanto os demais ministérios, especialmente os da área social, sofreram cortes brutais de custeio. O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer permanecer no cargo, e disse sem meias palavras que ou há o orçamento com emendas do relator ou então o mensalão, sinalizando que quer manter o avanço já conquistado pelos partidos fisiológicos sobre os cofres públicos.
A definição orçamentária trará também em si a marca da política fiscal que o novo presidente pretende executar. Durante as eleições, soube-se apenas que Lula quer revogar o teto de gastos, que exige emenda constitucional e aprovação de dois terços do Congresso. Além disso, será necessário definir um “estouro” do teto responsável, que abarque só despesas irreversíveis. A principal é a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600, uma promessa de campanha que custa inexistentes R$ 50 bilhões. Abrir mão dos impostos federais sobre combustíveis exigirá outro tanto, e acabar com a desoneração provocará aumento da inflação e manutenção de juros altos por mais tempo.
Antes de pensar nas reformas, e delas quase não se falou na campanha do PT, a missão primeira será atrair apoios no Congresso e influir na direção das duas Casas. Lula, em seus dois mandatos, abraçou as velhas raposas do Centrão, como Valdemar Costa Neto, manteve boas relações com o PSD de Kassab e cacife eleitoral renovado para atrair legendas que apoiam qualquer governo. Com base de 140 deputados, o governo, porém, ficará em córner legislativo. Para fazer diferença nos 100 primeiros dias, terá de delinear antes da posse um plano viável de como se movimentar no terreno movediço no Congresso.
Valor Econômico