Para governar, Lula terá de abrir espaço para o centro, se não quiser ser encurralado pelo Centrão.
Por Carlos Graieb (foto)
O terceiro mandato, não representaria apenas o PT e seus satélites, mas levaria em conta as preocupações de outros setores da sociedade.
No seu discurso de vitória no último domingo, Lula fez o indispensável: agradeceu àqueles que lhe prestaram apoio durante a disputa com Jair Bolsonaro. “Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nessa campanha. É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse vencedora“, disse ele. Todos têm consciência que sem a contribuição de personalidades vindas de fora da esquerda, Lula dificilmente teria ganhado. As adesões começaram com Geraldo Alckmin, o ex-tucano de perfil conservador que se tornou seu vice, e ao fim do segundo turno incluíam os ex-presidenciáveis Simone Tebet e André Janones, diversos economistas liberais (como Armínio Fraga e Pérsio Arida), representantes do PIB e do mercado financeiro (como a família Bracher, do Itaú) e celebridades que não se identificam como petistas, como Anitta. A cantora com certeza não está de olho em uma vaga no Ministério da Pesca. Mas empresários e economistas que empenharam seu nome para eleger Lula esperam, no mínimo, um compromisso firme com a responsabilidade fiscal, ao passo que políticos desejam ter voz e espaço na administração. O problema é que receber apoios é gostoso; acolher ideias e dividir o governo, nem tanto, sobretudo para uma legenda como o PT, cuja cartilha inclui conceitos como o de “hegemonia“.
Nesta semana, um site esquerdista entrevistou Rui Falcão, que coordenou a comunicação na campanha eleitoral de Lula. Uma das perguntas foi: “O PT terá mando de jogo no terceiro governo Lula? Será o partido hegemônico?” (olha a palavra aí). Falcão respondeu que é natural que aliados reivindiquem espaço, mas não devem almejar ter influência no programa de governo. “O mais importante é que o programa de governo não seja modificado pela ocupação, aqui ou ali, desse cargo, deste ministério“, disse ele. “Quem garante a supremacia e a soberania do programa que foi votado é o presidente da República, que é do PT.” O dirigente petista também afirmou que um giro ao centro descaracterizaria o partido. A entrevista demonstra como é difícil para o PT fazer qualquer concessão a quem pensa diferente, mesmo numa conjuntura como a atual. Lembremos que o partido não ganhou a eleição de lavada, mas por pouco, e enfrentará uma oposição renhida.
O risco para um PT que não caminhe para o centro é se ver encurralado pelo Centrão. O partido esperava contar com uma base de cerca de 180 deputados federais. Não deu. Juntos, PT, PV, PCdoB, PSB, Rede, Psol, Solidariedade e Avante conquistaram apenas 122 cadeiras. Enquanto isso, PL, PP e Republicanos, três partidos onde hoje se misturam políticos de extrema direita, de direita e do Centrão fisiológico, comporão no ano que vem a maior força da casa, com 187 deputados. Como mostrou O Antagonista nesta quinta-feira, Ciro Nogueira (que é do PP), levou para a primeira reunião com a equipe de transição uma lista de duas páginas com “sugestões” de nomes para Lula analisar. O Centrão pode se transformar em uma implacável máquina bolsonarista, mas no momento está pronto a cavar seu espaço no governo Lula, usando duas ferramentas poderosas para isso.
A primeira são os 19 bilhões de reais alocados no Orçamento Secreto do ano que vem. É possível que o STF decrete a inconstitucionalidade desse mecanismo nos próximos meses. Mas isso não significa que o Congresso vai abrir mão do dinheiro. Lula será convidado a discutir uma nova maneira de fazer com que os parlamentares continuem direcionando esses recursos para suas bases eleitorais, com mais transparência e, talvez, levando em conta as prioridades do governo. Quanto mais receptivo for o presidente eleito, mais ele afastará o risco de ter um Congresso raivoso bloqueando suas iniciativas e —por que não?— erguendo a espada do impeachment sobre a sua cabeça depois de alguns meses de governo (como aconteceu com Bolsonaro).
Há também o fato de que durante a campanha, Lula fez promessas que requerem bilhões de reais para serem cumpridas. A mais básica de todas, manter o Bolsa Família em R$ 600 (o PT já avisou que o nome Auxílio Brasil será descartado), demanda R$ 52 bilhões. O adicional de R$ 150 para crianças de até 6 anos das famílias beneficiárias do Bolsa Família acrescenta R$ 16 bilhões à conta. Outra promessa que rendeu votos e criou expectativas, o reajuste do salário mínimo com um aumento real de 2%, custaria cerca de R$ 10 bilhões, ao impactar despesas previdenciárias. A isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês retira R$ 22 bilhões dos cofres públicos. Até aí, são R$ 100 bilhões. Relator do Orçamento do próximo ano, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), que não é um inimigo de Lula, já avisou que não há dinheiro para nada disso – o que, de qualquer maneira, não é nenhuma novidade.
Uma conversa com Castro fez parte da agenda da equipe de transição nesta quinta-feira. Ali foi mencionada pela primeira vez a ideia de uma PEC que libere, de maneira extraordinária, os R$ 52 bilhões necessários para pagar o (novo) Bolsa Família de R$ 600. Recursos para o aumento real do salário mínimo, talvez não de 2%, mas de 1,3%, também serão requisitados. Seria dinheiro fora do teto de gastos, como aquele que o governo teve autorização para gastar com o auxílio emergencial, durante a pandemia. Como observou o senador Renan Calheiros, uma velha raposa aliada de Lula, isso pode significar uma capitulação ao Centrão logo de saída. “Essa coisa da PEC é uma barbeiragem, você se entrega de mão beijada ao Centrão“, disse ele a O Antagonista.
Renan Calheiros, assim como Simone Tebet, é do MDB. Eles se desentenderam antes da campanha eleitoral, mas hoje estão do mesmo lado: acham que o partido, que elegeu 42 deputados, deve se alinhar a Lula. Em posição semelhante está o PSD de Gilberto Kassab, que também conquistou 42 vagas na Câmara. Em entrevista à Folha de S. Paulo nesta quinta-feira, ele disse que levará seu partido para o campo governista se o PT se comprometer em apoiar a reeleição de Rodrigo Pacheco para a presidência do Senado, em fevereiro do ano que vem, colaborar com os governadores do PSD nos estados e olhar com carinho indicações para cargos no Planalto – todas elas, é claro, “com o mais alto padrão de eficiência e moral“. Segundo Kassab, “fazer parte da base é participar.”
É improvável que as bancadas do MDB e do PSD passem a votar em bloco alinhadas com o governo Lula. Os dois partidos têm lulistas e bolsonaristas e essa foi a razão porque o primeiro lançou candidatura própria, com Tebet, e o segundo se manteve neutro durante as eleições. O único partido que, sem ter participado da coligação que elegeu Lula, deve entregar a ele de maneira sistemática os 17 votos que terá na Câmara é o PDT (aquele, de Ciro Gomes). O atual líder da legenda na Câmara, o deputado federal Wolney Queiroz, tem presença quase certa na equipe de transição que terá sua composição anunciada na semana que vem. “Lula sabe que precisa construir uma base no Congresso para governar“, diz o presidente do PDT Carlos Lupi. “Ele vai tomar as decisões corretas.”
Se Lula repetir no governo a partilha que está sendo feita na transição, será a decisão errada. Seria irrealista esperar que o partido entregue áreas caras à sua militância, como as sociais, a “gente de fora” — ou que não seja de aliados próximos como o PSOL e o PCdoB. Aliás, o ônus de guerrear pelas pautas “progressistas” em um cenário onde a direita cresceu e apareceu deve mesmo caber a esse núcleo ideológico. Também não adianta imaginar uma política externa sem o DNA petista, o que tem um lado bom — o carisma de Lula, que recebeu 20 ligações de líderes de países como Estados Unidos, França e Alemanha logo depois de se eleger — e um lado péssimo — o antiamericanismo infantil, o namoro firme com ditaduras de esquerda e o chamego ocasional com países como o Irã, na busca por um “mundo multipolar“. Mas será necessário abrir espaço para o centro na economia, sem dúvida, bem como nas áreas cruciais da educação, da saúde, da segurança e mesmo do meio ambiente. Sem isso, não há frente ampla. Sem isso, resta o Centrão.
Revista Crusoé