Os sinais sobre política fiscal do presidente eleito serão decisivos nas próximas semanas
Por Sergio Lamucci (foto)
Passada a eleição, o momento das promessas mirabolantes ficou para trás. Em 2023, o próximo presidente vai enfrentar um cenário complexo. A economia brasileira deverá perder fôlego, pela combinação do efeito do forte ciclo de alta de juros e da desaceleração - ou recessão - global. Com isso, o PIB tende a avançar entre 0,5% e 1% no ano que vem, depois de crescer entre 2,5% e 3% neste ano. Para lidar com esse ambiente mais hostil e de expansão mais fraca da arrecadação, será fundamental definir com clareza como será a condução das contas públicas. Os sinais emitidos nas próximas semanas já serão importantes para reduzir ou ampliar as incertezas em relação à política fiscal. O novo governo terá de definir o tamanho da licença para gastos extras em 2023 e o desenho da nova regra fiscal, que deverá substituir ou remendar o teto de gastos.
Em 2022, os números da dívida e do déficit público se mostram consideravelmente melhores do que o projetado na virada do ano. A inflação alta, os preços de commodities em níveis de elevados e o crescimento mais forte da economia do que o previsto contribuíram para os dados fiscais mais favoráveis. A dívida bruta, que fechou 2021 em 80,3% do PIB, deve terminar neste ano em 78% do PIB, estima a Tendências Consultoria. O resultado primário (que exclui gastos com juros) deve atingir em 2022 um superávit de 1,1% do PIB nas contas da consultoria, melhor que o 0,7% do PIB do ano passado.
Em 2023, porém, a situação deve voltar a piorar. “O caráter cíclico da arrecadação, que desde o início da retomada pós-pandemia nos rendeu cofres mais cheios, perderá tração com a previsão mais contida de crescimento doméstico e global”, escreve a economista Juliana Damasceno, da Tendências. “Além disso, manobras patrocinadas pelo governo para adiantar dividendos terão contrapartida negativa no próximo exercício. A acomodação dos preços das commodities, assim como da inflação doméstica, impede, por sua vez, os impulsos nominais observados ao longo deste ano”, diz ela. Índices de preços elevados inflam o PIB em termos nominais, e commodities mais caras engordam as receitas.
Juliana observa que “a sustentação da inflação acima da meta perseguida pelo BC exigirá juros altos por mais tempo, aumentando o fardo de gerar e carregar mais dívida”. A Tendências, por exemplo, prevê que os juros reais (descontada a inflação) ficarão em 7,8% em 2023, acima dos 6,5% de 2022. Com isso, o setor público terá despesas financeiras maiores no ano que vem.
A esse quadro mais adverso, os candidatos, por meio das promessas, “contrataram um passivo difícil de ser administrado, reforçando as perspectivas desfavoráveis para o déficit e a dívida pública de 2023”, diz Juliana. Para o ano que vem, a consultoria projeta que o déficit primário do setor público consolidado ficará em 1,4% do PIB, mas Juliana afirma que o número pode ser pior, chegando a 2% do PIB, porque há riscos fiscais que podem se concretizar e não estão incluídos por ora nas previsões da Tendências. No mapeamento de Juliana, o impacto no resultado primário de perda de receita para o governo federal pode chegar a R$ 122,6 bilhões, considerando aí R$ 11,2 bilhões da manutenção do corte de 35% do IPI; R$ 52,9 bilhões da manutenção em zero dos tributos federais sobre os combustíveis; R$ 27,2 bilhões de desonerações gerais e setoriais; e R$ 31,3 bilhões da correção da tabela do Imposto de Renda (IR), levando em conta a inflação acumulada no governo de Jair Bolsonaro.
No caso dos aumentos de gastos, o efeito sobre as contas da União pode ser de R$ 157,7 bilhões, dos quais R$ 52 bilhões referentes à continuidade do Auxílio Brasil em R$ 600; R$ 51,2 bilhões de quitação de precatórios a pagar; R$ 17,7 bilhões, se houver um reajuste linear de 15% para os servidores federais; e R$ 36,8 bilhões, se as despesas discricionárias do Executivo forem corrigidas em termos reais (atualizando pela inflação). Somando despesas e receitas, um total de R$ 280,3 bilhões, ou 2,7% do PIB. O número pode ser eventualmente maior, devido a algumas promessas ainda mais generosas feitas antes da votação de ontem.
Caberá ao próximo governo “a difícil missão de acomodar mais gastos enquanto reconstrói uma âncora fiscal crível e executável”, como resume Juliana. A nova regra, lembra ela, terá de ser devidamente calibrada para garantir o equilíbrio das contas públicas ao longo do tempo, indicando uma trajetória sustentável da dívida pública.
Na campanha, houve promessas generosas, de correções expressivas da tabela do IR a benefícios adicionais no Auxílio Brasil. “Um reajuste aos servidores federais depois de três anos de congelamento e a recomposição das despesas discricionárias para manter o funcionamento da máquina pública são outros, mas não os únicos, fatores de pressão”, diz a economista da Tendências. “Lidar com a conta extra bilionária para os próximos anos requer responsabilidade fiscal, conjugada a rigor técnico e capacidade de negociação política inéditos.”
A economista também ressalta que, “após um ano marcado por variados estímulos fiscais, junto a um forte ciclo de aperto monetário em curso, realinhar as políticas fiscal e monetária também será prioridade”. Para que os juros não fiquem altos por muito tempo, é necessário que não haja uma expansão fiscal exagerada. Juliana aponta ainda outra “armadilha a ser desarmada”: como resolver a questão das emendas de relator, que formam o chamado orçamento secreto. “Diante da dificuldade em operar o presidencialismo de coalizão, o orçamento secreto ganhou o espaço que hoje falta para inúmeros programas e condicionou a agenda econômica a repasses sem transparência, racionalidade, urgência e efetividade”, diz ela. “Com a composição de Congresso eleita no primeiro turno, a capacidade do próximo governo de barrar desatinos fiscais e tocar qualquer reforma dependerá mais que nunca de uma revisão desse clientelismo que capturou boa parte da já pequena margem discricionária disponível - menos de 7% dos gastos totais propostos para 2023”, afirma Juliana, referindo-se à pequena parcela do Orçamento sobre o qual o governo tem controle.
O ponto, como afirma a economista, é que não há mais espaço para desancoragem de expectativas combinada com expansão fiscal. “Fugir de uma reorientação clara e crível para a condução das contas públicas condenará o próximo governo, já de início, a outra crise econômica e a uma instabilidade política nada desprezível.” O resultado, diz Juliana, levaria a um equilíbrio ruim, marcado por dívida fora de controle, juros altos, inflação resistente e crescimento baixo.
Valor Econômico