Não é por ter acontecido há 58 anos — e, portanto, por não estar na memória da maioria dos brasileiros — que a história do Golpe Militar de 1964, que instaurou duas décadas de uma ditadura sangrenta no país, pode ser reescrita ao sabor desta ou daquela ideologia. É flagrante a desonestidade com essa história, recente e dolorosa, que emana da nota divulgada na quarta-feira pelo Ministério da Defesa. Assinada pelo até então ministro Walter Braga Netto e pelos comandantes das três Forças — Almir Garnier Santos (Marinha), Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Exército) e Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) —, ela distorce fatos ao dizer que “o movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”.
Como pode ser um marco de evolução um regime que rasgou a Constituição, fechou o Congresso, cassou políticos, aposentou ministros do Supremo, censurou a imprensa, sufocou a liberdade de expressão, institucionalizou a tortura e deu cabo de opositores negando às famílias o direito de velar seus corpos? Se o Golpe de 1964 pode ser considerado um marco, é de um dos momentos mais sombrios da História do Brasil. Precisa, sim, ser lembrado, mas como a ruptura que foi, para que não seja repetido na nossa democracia.
Outro equívoco é afirmar que “nos anos seguintes ao 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político”. Que estabilização? Nem o regime instaurado foi estável. No fim dos anos 1960, houve “o golpe dentro do golpe”, que tornou a ditadura mais radical, com instrumentos como o AI-5, permissão ao governo para cometer todo tipo de arbítrio. É certo que o país cresceu em média 6,3% ao ano no período, mas o “milagre econômico” era mais uma peça publicitária. Como afirmou no GLOBO a colunista Míriam Leitão, “houve duas recessões, calote da dívida externa, e no fim o país estava com uma hiperinflação que foi debelada apenas na democracia”.
Tanto quanto o conteúdo da nota, preocupa o contexto. Compreende-se que o ministro Braga Netto, cotado para ser vice na chapa do presidente Jair Bolsonaro, ocupa um cargo político. Mas os comandantes das três Forças, não. A linha que separa os quartéis da ideologia do Planalto deveria estar clara à luz da Constituição. Especialmente num cenário em que Bolsonaro volta a atacar instituições da República e a demonizar urnas eletrônicas, insinuando não aceitar o resultado das próximas eleições e ameaçando a democracia com novos arroubos golpistas.
Já há crises suficientes na agenda política nacional, a maioria fabricada pelo próprio Bolsonaro. Não precisamos de mais uma. A defesa intransigente da democracia é dever de todos os brasileiros. Nas mais de três décadas desde a redemocratização, vivemos o período democrático mais longevo da História do Brasil, tantas são as reviravoltas políticas gravadas na trepidante memória do país. Este sim deveria ser um marco para celebrar todos os dias.
O Globo