A unificação das forças de centro dependeria de um acordo entre seus candidatos ou de um deles atrair os eleitores dos demais, ou de um outro fato novo na política
Por Luiz Carlos Azedo (foto)
A nove meses das eleições presidenciais, o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a resiliência da base eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, favorecido pelo exercício do poder, dominam o cenário pré-eleitoral. O campo da chamada terceira via existe no eleitorado, mas, até agora, não encontrou um candidato capaz de fulanizá-lo, como é da nossa tradição. Essa fragmentação reproduz o cenário do segundo turno de 2018, a não ser que surja algum fato novo.
A unificação das forças de centro dependeria de um acordo entre seus candidatos — Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (Podemos), João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Alessandro Vieira (Cidadania) — ou de um deles atrair os eleitores dos demais. Sem isso, nada garante que Lula ou Bolsonaro possam ser deslocados do segundo turno. A polarização direita x esquerda é mais desejada por Bolsonaro. Lula se movimenta para atrair lideranças de centro e bloquear a chamada terceira via.
Há várias explicações para as dificuldades das forças de centro. Aproveito o Bicentenário da Independência para destacar uma delas: a trajetória das ideias liberais no Brasil. Quando D. Pedro I introduziu o direito à propriedade privada, na Constituição outorgada de 1824, esse instituto da ordem burguesa serviria de blindagem para o regime escravocrata, até a Abolição, em 1888. Enquanto o liberalismo na Europa ocorria num contexto de trabalho livre e de igualdade perante a lei, aqui no Brasil a ordem escravocrata predominante restringia seus benefícios, os “direitos iguais”, aos homens livres.
No Império, todas as revoltas populares e revoluções de caráter republicano foram duramente reprimidas, sobretudo as que pregavam a abolição. A disputa entre conservadores (saquaremas) e liberais da época (luzias) se dava no eixo da centralização x descentralização, ou seja, da autonomia das províncias. Em 1853, o Gabinete de Conciliação uniu conservadores e liberais numa “ponte de ouro”, nas palavras do conselheiro Nabuco de Araújo, na qual os “saquaremas” faziam oposição aos “luzias” nas províncias e vice-versa, mas todos apoiavam a monarquia.
A “política de conciliação” garantiu a estabilidade institucional e retardou a abolição. O Marques de Paraná, o mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão, que liderou o gabinete, recebeu esse título sem conhecer o estado. Era um defensor ferrenho da pena de morte e da escravidão, construiu sua fortuna ilicitamente em Além Paraíba (MG), onde possuía 200 escravos e 190 mil pés de café.
Com a derrocada do Império, a hegemonia do pensamento republicano passou a ser positivista, protagonizada pelos militares, e viria a se confrontar com o novo liberalismo republicano dos cafeicultores paulistas, que protagonizaram a substituição da mão de obra escrava pelos trabalhadores assalariados europeus e promoveriam a industrialização. Esse choque pautaria as disputas políticas da Primeira República, até a Revolução de 1930, que mudou o eixo da política brasileira. O liberalismo brasileiro conectou a elite política com a Europa e os Estados Unidos, mas ignorou as iniquidades sociais.
Patrimonialismo
Após a derrota da Revolução Constitucionalista de 1932, a disputa entre setores reacionários e conservadores com a elite paulista, que dava as cartas na economia, era decidida na política, com a intervenção do Estado em todos os setores da vida nacional. Nos momentos em que o povo entrou em cena, como na eleição de Getúlio Vargas, em 1950, e no governo João Goulart, com uma agenda nacionalista, a reação das velhas oligarquias e da elite liberal, inclusive paulista, com suas conexões internacionais, foi golpista.
Assim como a Independência não foi uma revolução de caráter popular e liberal, mas a continuidade da ordem das elites da época, nas décadas de 1830 e 1840, em 1889, 1930, 1945, 1961 e 1964 deu-se o mesmo. A “política de conciliação” sempre renasce das cinzas para pacificar o país, porém, ao mesmo tempo, para conter as aspirações profundas de mudança, de modo a sustentar a ordem dominante e seus privilégios. É uma das chaves da “modernização conservadora” — a outra, é a “via prussiana” do autoritarismo.
Após 20 anos de regime militar, devemos aos liberais um papel decisivo na transição à democracia, sob a liderança hegemônica de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Em 35 anos de democracia, o eixo do poder se deslocou de setores liberais (Sarney, Collor e Itamar Franco) para a esquerda social-democrata (Fernando Henrique Cardoso) e nacional-desenvolvimentista (Lula e Dilma Rousseff).
Com exceção de Collor e Dilma, todos operaram a velha “política de conciliação”. A recidiva do patrimonialismo, porém, pôs tudo a perder. Por ironia, o governo liberal de Michel Temer foi a antessala da volta dos militares ao poder, por meio da eleição de Jair Bolsonaro, em aliança com os setores conservadores e atrasados. O ultraliberalismo anárquico que emergiu das ruas em 2013 foi capturado pelo atual presidente da República na campanha de 2018. O espaço para a aliança entre liberais e social-democratas se estreitou.
Correio Braziliense