Quando se pretende consultar a opinião da população para embasar uma política pública, é preciso levar a sério o risco de manipulação pela linguagem. Não há nada de democrático quando isso ocorre.
Por Diogo Schelp (foto)
Agendada para receber as últimas manifestações da população neste domingo (2), a consulta pública a respeito da inclusão de crianças de 5 a 11 anos na campanha de vacinação contra covid-19 é um exemplo de como o poder público usurpa um mecanismo democrático para obter o resultado que lhe convém. Desde a justificativa para a consulta até as perguntas feitas para que os cidadãos pudessem "registrar sua opinião" sobre a vacinação de crianças, passando pelo material explicativo disponibilizado pelo Ministério da Saúde, todo o processo induz a um resultado que seja contrário a uma vacinação pediátrica irrestrita.
A própria realização da consulta pública foge ao padrão da inclusão de outros grupos da população na campanha de imunização contra a covid-19, já que bastava a autorização do órgão competente, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que foi concedida no dia 16 de dezembro. O primeiro efeito negativo da insistência em realizar essa consulta pública é o de adiar o início da imunização das crianças.
Mas vamos à manipulação na consulta em si. O Ministério da Saúde (MS) afirma, na apresentação, que o objetivo da consulta pública é "informar e conhecer as dúvidas da população" e "obter subsídios e informações da sociedade" para tomar a decisão de política pública.
O texto, que deveria ser neutro para não influenciar nas opiniões que se pretendia colher junto à população, é tendencioso ao afirmar que "há lacunas ainda no que se refere ao custo benefício desta vacinação". Ora, essa afirmação desmente a própria avaliação da Anvisa ao autorizar a vacinação pediátrica contra covid-19.
O segundo problema reside no documento informativo disponibilizado pela Secovid (Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19) a respeito dos aspectos epidemiológicos da doença, dos efeitos da covid nas crianças e dos aspectos técnicos da vacina da Pfizer para a faixa de 5 a 11 anos autorizada pela Anvisa.
Na avaliação do infectologista e epidemiologista Carlos Magno Fortaleza, da Universidade Estadual Paulista, o documento "enfatiza muito os eventos adversos e pouco os riscos da covid-19 em crianças". Ou seja, o texto elaborado pelo MS minimiza o perigo da doença para as crianças e dá destaque desproporcional para supostos efeitos futuros, não comprovados, da vacina.
O texto pouco aborda os benefícios da vacinação de menores de idade com o produto da Pfizer, o que poderia ter sido feito, por exemplo, com dados disponibilizados pela autoridades sanitárias dos Estados Unidos, onde a imunização desse grupo etário já está sendo feita há meses com bons resultados.
Portanto, ao prestar informações completas e equilibradas, o MS induz a um resultado contrário à vacinação irrestrita das crianças.
Mas o mais espantoso realmente é a maneira como foram elaboradas as perguntas do formulário para colher a opinião dos cidadãos sobre o tema da vacinação de crianças.
São cinco perguntas em que a resposta pode ser "sim" ou "não" e uma questão dissertativa. Elas são elaboradas de forma que quem é radicalmente contra e quem é radicalmente a favor da vacinação das crianças acabam dando a mesma resposta para a maioria das perguntas. Explico.
A primeira pergunta é a seguinte: "Você concorda com a vacinação em crianças de 5 a 11 anos de forma não compulsória conforme propõe o Ministério da Saúde?"
Um cidadão antivacina ou contrário à vacinação de crianças em qualquer circunstância responderá "não" a essa pergunta. Mas o cidadão que é favor da vacinação ampla e irrestrita das crianças, inclusive com a exigência do comprovante para matrícula em escolas ou outras atividades, por exemplo, se encontrará num beco sem saída. Se responder "sim", estará concordando com a tese do governo Bolsonaro de que essas exigências não podem ser feitas. Se responder "não", por discordar da vacinação "conforme propõe o Ministério da Saúde", estará se posicionando também contra a vacinação em geral.
A pergunta é uma armadilha, portanto. Ela engloba duas questões em uma só e induz os cidadãos que são favoráveis à vacinação a responder "sim", mas dentro das condições sugeridas pelo Ministério da Saúde.
O mais honesto seria desmembrar a pergunta em duas. A primeira seria: "Você concorda com inclusão de crianças de 5 a 11 anos na campanha de vacinação contra covid-19?" E a segunda: "Você concorda que essa vacinação ocorra de forma compulsória?"
Quem é a favor da vacinação compulsória responderia "sim" às duas perguntas. Quem é a favor da vacina, mas contra a exigência do comprovante, responderia "sim" à primeira e "não" à segunda. E quem é contra a vacinação em qualquer circunstância responderia "não" a ambas.
A segunda pergunta disponível na consulta pública realizada pelo MS é: "Você concorda com a priorização, no Programa Nacional de Imunização, de crianças de 5 a 11 anos com comorbidades consideradas de risco para covid-19 grave e aquelas com deficiência permanente para iniciarem a vacinação?"
Essa pergunta é totalmente desnecessária e embute o risco de ser usada como desculpa para o governo postergar a vacinação de crianças sem comorbidades. Ora, é evidente que, uma vez disponibilizada a vacina para crianças, se não houver inicialmente doses para todas, será dada prioridade àquelas com comorbidades, exatamente como ocorreu com a vacinação dos adultos e dos adolescentes.
A terceira pergunta da consulta é: "Você concorda que o benefício da vacinação contra a COVID-19 para crianças de 5 a 11 anos deve ser analisado, caso a caso, sendo importante a apresentação do termo de assentimento dos pais ou responsáveis?"
Aqui, mais uma vez, a pergunta confunde quem é a favor da vacinação irrestrita. Se a resposta for "sim", estará dando aval à criação de empecilhos à vacinação, burocratizando-a com a exigência de termo de assentimento dos pais. Se responder "não", pode achar que está de certa forma negando que os benefícios da vacinação possam ser avaliados caso a caso ou que não é "importante" o consentimento dos pais.
Eis a quarta pergunta da consulta pública: "Você concorda que o benefício da vacinação contra a COVID-19 para crianças de 5 a 11 anos deve ser analisado, caso a caso, sendo importante a prescrição da vacina pelos pediatras ou médico que acompanham as crianças?"
Aqui, mais uma vez, a formulação da pergunta induz à resposta "sim". Quem seria contra a prerrogativa de médicos de prescrever a vacina para quem considerem necessário? Mas o verdadeiro objetivo da pergunta é embasar uma exigência de prescrição médica para a vacinação de crianças, conforme já foi proposto pelo Ministério da Saúde. E isso não está claro na pergunta.
A maneira correta, sem rodeios, de perguntar seria: "Você concorda que a vacinação contra a covid-19 para crianças de 5 a 11 anos ocorra apenas mediante a prescrição da vacina por pediatras ou médicos?"
Em resposta a uma pergunta deste colunista, durante entrevista à Jovem Pan News, o ministro Marcelo Queiroga admitiu que poucos brasileiros têm acesso a médicos que possam prescrever a vacina para seus filhos, e que isso pode dificultar a vacinação em massa dessa faixa etária. Diante desse reconhecimento, é de se esperar que a ideia de fazer essa exigência seja abandonada pelo ministro.
A quinta pergunta é: "Você concorda com a não obrigatoriedade da apresentação de carteira de vacinação para que as crianças frequentem as escolas ou outros estabelecimentos comerciais?"
Como se vê, a questão da vacinação compulsória retorna nessa pergunta, mas elaborada de forma a confundir, ao utilizar o termo "não obrigatoriedade". Como bem sabem profissionais de pesquisas de opinião, deve-se evitar perguntas em que é necessário fazer uma dupla negativa para se obter uma resposta positiva.
Ou seja, da maneira como está formulada, quem é a favor da apresentação da carteira de vacinação precisa responder "não" à pergunta. E quem é contra, deve responder "sim". Isso confunde e induz à resposta que o governo quer, o "sim".
A maneira correta de perguntar seria: "Você concorda com a obrigatoriedade da apresentação de carteira de vacinação para que as crianças frequentem as escolas ou outros estabelecimentos comerciais?" Sim ou não, e pronto.
Resta a quem percebeu a tentativa de manipulação da consulta pública contida nas perguntas de múltipla escolha usar a última pergunta, dissertativa, para dizer realmente o que pensa a respeito do assunto. "Você tem contribuições acerca do documento apresentado (Documento SECOVID)? Caso não tenha, por gentileza, escreva "não" no campo abaixo."
Diante do fato de que o governo terá apenas dois dias para tabular as respostas, pois a audiência pública está marcada para 4 de janeiro, qual a chance de que as respostas dissertativas sejam realmente lidas e consideradas? Afinal, foram mais de 17.700 respostas à consulta pública.
Na manipuladora consulta pública elaborada pelo governo de Jair Bolsonaro, responder "sim" a qualquer pergunta faz o cidadão concordar com restrições à ampla vacinação de crianças; responder "não" faz parecer que ele é contra a vacinação.
Por fim, uma observação de outro momento na história brasileira em que se tentou manipular a opinião pública por meio de questionamentos confusos, enganosos. Isso ocorreu em 2005, no referendo das armas organizado no governo Lula.
A pergunta do referendo foi: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?"
A pergunta embutia duas armadilhas. A primeira era a já mencionada necessidade de fazer uma dupla negativa para se obter uma resposta positiva. Ou seja, quem era a favor do direito dos cidadãos de comprar armas precisava responder "não". Quem era contra, respondia "sim".
Uma pergunta mais direta seria: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser permitido no Brasil?"
A segunda armadilha era o fato de que a pergunta não esclarecia a quem se dirigia a possível proibição de compra de armas e munição. A todos os cidadãos? Aos bandidos? Que armas eram essas? O eleitor poderia ser induzido a acreditar que se tratava de uma proibição de comércio ilegal de armas, e acabar votando "sim", por exemplo.
Quando se pretende consultar a opinião da população para embasar uma política pública, é preciso levar a sério o risco de manipulação pela linguagem. Não há nada de democrático quando isso ocorre.
Gazeta do Povo (PR)