O denominador comum nas trajetórias dos países que lograram superar a armadilha da renda média é a inserção no comércio internacional
Por Mario Mesquita* (foto)
O ano de 2022 marca o bicentenário do Brasil como nação independente. Sob o prisma da economia (uma ótica limitada, admito, mas que é o objeto desta coluna), a data merece mais reflexão do que ufanismo.
O Brasil de 1822 contava com 4,5 a 5 milhões de habitantes, a grande maioria no campo, sendo que cerca de um terço eram escravos. Quase metade da população estava no Nordeste, e cerca de 40% no Sudeste. As principais atividades econômicas eram a produção e exportação de açúcar, algodão e, em rápido crescimento, de café. Apesar da precariedade das bases estatísticas, os melhores estudos sobre a renda, no período inicial da vida independente, indicam que o país nasceu com patamar de renda média. As estimativas de Angus Maddison, economista da OCDE e Universidade de Groningen, com uma obra fundamental sobre a evolução da renda mundial, indicam que nossa renda per capita era pouco superior à metade da americana, e a de países afluentes da Europa Ocidental, às vésperas da independência.
O Império logrou manter a integridade territorial, a despeito de várias insurreições separatistas no Nordeste e Sul do país. Mas, a julgar pelas estimativas disponíveis, foi durante o período imperial que o Brasil ficou para trás, seja ante os EUA ou mesmo vizinhos, como a Argentina. No início do período republicano, a renda per capita brasileira equivalia a apenas 23% da americana, e 37% da argentina. Os dados de comércio exterior e produto sugerem que o PIB da região cafeeira até mostrou crescimento, algo como 1,5% a 2% ao ano.
Dada a limitada integração inter-regional, foi a ausência de uma atividade exportadora com dinâmica similar fora da região cafeeira, notadamente na região Nordeste, que ainda respondia por cerca de 40% da população total, que levou a economia nacional à virtual estagnação, enquanto o comércio e PIB mundiais cresciam de forma acelerada. Marcelo Abreu, em uma resenha detalhada e ampla do período, conclui que o PIB per capita deve ter crescido a um ritmo de apenas 0,3% a 0,4% ao ano durante o Império.1
Em 1922, quando do primeiro centenário, o Brasil contava com cerca de 28,5 milhões de habitantes. Passadas a abolição tardia da escravidão, a Proclamação da República, e a onda imigratória do final do século XIX e início do XX - que mudaria para sempre nossa cultura e estrutura demográfica - o PIB per capita ainda registrava o nosso atraso, em que pese o desenvolvimento da infraestrutura e a emergência de centros urbanos com certa sofisticação e ambição cosmopolita. Na realidade, os dados de Maddison apontam para uma piora relativa adicional. Um século após a independência, a renda per capita brasileira era apenas 18% da americana, e 27% da argentina.
Desde então, em particular a partir da Primeira Guerra Mundial, a estrutura da economia foi profundamente alterada, com o estabelecimento de um parque industrial diversificado (ainda que pouco integrado nas correntes de comércio internacional, graças ao nosso tradicional protecionismo), a urbanização e o avanço da alfabetização e do grau geral de educação da população (mesmo que, nesse último quesito, o progresso tenha sido muito aquém do desejável). A economia apresentou crescimento acelerado por cerca de meio século, entre os anos 30 e 80 do século passado, mas, desde então, voltou ao seu padrão de baixo dinamismo.
Após a independência, o auge relativo da nossa economia, em termos de renda per capita, parece ter sido em 1980, quando teríamos atingido, segundo os dados da Penn World Table, que continuou a obra de Maddison, algo como 30-40% da renda per capita dos EUA. Desde então, a mesma fonte aponta para um retrocesso dessa razão, para cerca de 25%.
O debate sobre a estagnação das muitas décadas perdidas desde 1980 ainda está em curso, mas parece haver consenso, entre os economistas profissionais, que o modelo de crescimento acelerado baseado em substituição de importações e liderado pelo Estado, que selecionava, protegia e financiava os chamados “campeões nacionais” deixou de ser funcional, e que tentativas de recriá-lo, como no início da década passada, são fadadas ao insucesso. Não obstante, esse tipo de política, seja por certa carência de imaginação, que nos condena a repetir fórmulas antigas, ou, mais provável, por apelar à tradição patrimonialista brasileira, de apropriação de recursos públicos por grupos privados, segue encontrando respaldo entre segmentos da classe política.
Trata-se, em suma, de uma trajetória, como nação independente, marcada por 50 anos de crescimento rápido e 150 anos de muito pouco dinamismo. Infelizmente, o desempenho pífio desde 1980 não é uma exceção, e sim o retorno a um padrão que vem de longa data.
Uma reflexão sobre as razões do nosso atraso deve incluir a experiência das economias mais bem-sucedidas. O denominador comum nas trajetórias dos países, notadamente asiáticos, que lograram superar a armadilha da renda média, e chegaram finalmente ao grupo das nações desenvolvidas, é a inserção no comércio internacional. Essas economias mostram que o protecionismo não é a solução, e sim parte do problema: sem abrir a economia, fica difícil contemplar a ruptura do padrão de baixo crescimento e, assim, um tricentenário mais próspero.
1 A Economia brasileira no Império: 1822-1889, em Brasil: Patrimonialismo e Autarquia (2020).
*Mario Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco
Valor Econômico