Marco legal enuncia que as operações no mercado de câmbio podem ser realizadas sem limitação de valor
Por Gustavo Loyola* (foto)
Em artigo publicado nesta coluna em novembro de 2003, externei minha opinião de que a reforma das leis cambiais era a mais adiada das reformas no Brasil. Entendia que, em plena era da globalização financeira e dos regimes de taxas flutuantes de câmbio, não era cabível que o Brasil operasse com uma legislação cambial que é um verdadeiro “patchwork”, em que se misturam pedaços de normas restritivas datadas da era Vargas, com dispositivos editados a partir dos anos 1990 que já consideram as complexidades dos mercados financeiros contemporâneos.
Como mencionei no citado artigo, o princípio basilar da legislação cambial brasileira é o do chamado "monopólio de câmbio" do Banco Central (antes da Sumoc). O exportador deve compulsoriamente vender as divisas resultantes de suas exportações para a Autoridade Monetária e os importadores somente podem adquirir câmbio para liquidar suas compras externas quando autorizados pelo BC. Na conta de capitais, por esse mesmo princípio, prevalece o sistema de assegurar o direito de saída, apenas aos capitais cuja entrada foi registrada no BC. Esse princípio, embora relaxado a partir de 1990, com o fim do sistema de repasses e coberturas e o desenvolvimento do mercado interbancário de câmbio, persiste até os dias de hoje como base lógica de nossas normas cambiais.
O novo marco legal do mercado de câmbio recentemente aprovado pelo Legislativo, a partir de iniciativa do Executivo de 2019, é uma das mais relevantes reformas levadas a cabo no Brasil nos últimos anos. Não sendo uma revolução radical do marco normativo vigente, traz um grau de flexibilização e de simplificação que deve impactar positivamente na redução dos custos de transação para os agentes econômicos, empresas e pessoas naturais, que transacionam no mercado cambial. Trata-se de mais um tijolo na construção de um regime jurídico mais favorável ao desenvolvimento equilibrado e sustentável do país.
Logo de início vale salientar que um aspecto positivo e relevante da nova legislação é seu sentido gradualista, afastando-se da ideia de um “big bang” no mercado cambial, como pretenderam alguns projetos de lei anteriores apresentados no Congresso e que reduziam a uns poucos artigos a legislação cambial, promovendo uma espécie de terra arrasada no marco legal existente, como corretamente salientou o ex-presidente do BC, Gustavo Franco, quando foi divulgado, em 2005, um projeto patrocinado pela Fiesp e pela Funcex.
Conjugado a esse saudável gradualismo, o texto aprovado deixa espaço para que o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o Banco Central (BC) regulamentem a partir de agora, com a adequada segurança jurídica, o mercado cambial de forma a mantê-lo compatível com as necessidades ditadas pela evolução da economia e pela introdução de novas tecnologias e processos nos mercados financeiros.
O novo marco legal enterra de vez o princípio do “monopólio de câmbio”, enunciando textualmente já no seu artigo segundo que “as operações no mercado de câmbio podem ser realizadas livremente, sem limitação de valor, observadas as diretrizes estabelecidas pelo CMN e o regulamento a ser editado pelo BC”. Vê-se aqui, contudo, a preocupação correta com preservação da capacidade das autoridades financeiras de disciplinarem o mercado de câmbio, tendo em vista suas implicações macroeconômicas e para a estabilidade financeira, além, por óbvio, da necessidade da prevenção da lavagem de dinheiro originário de práticas criminosas.
Uma das consequências mais positivas do fim do “monopólio de câmbio” é a liberdade que se passa a dar para os exportadores utilizarem mais livremente seus recursos no exterior, inclusive para realizar mútuos e empréstimos. Essa liberdade, aliada a alguns outros aspectos da nova legislação, deverá ter impacto positivo sobre a rentabilidade das exportações brasileiras.
Outro aspecto relevante do mencionado projeto é a maior flexibilização do uso de moeda estrangeira nas transações entre residentes e não-residentes, mas sem abrir mão do curso forçado da moeda nacional. Cabe reconhecer, porém, que há nesse ponto um aspecto mais polêmico da nova legislação que é a faculdade que se dá ao Banco Central para regulamentar contas em moeda estrangeira no País, inclusive quanto aos requisitos para sua manutenção e movimentação. Tal dispositivo, se mal utilizado, pode se tornar um Cavalo de Tróia para nosso sistema monetário.
Uma nota quase pitoresca para finalizar este artigo. O projeto deixa de considerar crime a cobrança de “ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira”, conforme disposto na Lei 1.521/1951, assim como revoga dispositivo que proíbe a “especulação cambial” (Lei 4.182/1920). De fato, antes tarde do que nunca...
*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
Valor Econômico