Foto: Gabriela Biló/Arquivo/Estadão
Emanuela Medrades28 de julho de 2021 | 06:59A quebra do sigilo do telefone usado pela diretora da Precisa Medicamentos para negociar a vacina Covaxin com o Ministério da Saúde revela uma atuação intensa antes de os dois lados se sentarem formalmente à mesa para uma primeira proposta de compra do imunizante. Os contatos envolveram áreas do ministério que não tinham atribuição direta de negociar vacinas contra a Covid-19.
Emanuela Medrades foi a principal responsável pelas tratativas entre a Precisa, empresa que fez a intermediação para a fabricante indiana Bharat Biotech, e o Ministério da Saúde.
A diretora técnica foi ouvida pela CPI da Covid no Senado nos últimos dias 13 e 14. Seu depoimento foi considerado evasivo, pouco esclarecedor e voltado à blindagem tanto do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) quanto do dono da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano. O empresário também foi convocado a depor.
Os senadores quebraram os sigilos telefônico e telemático dos donos, diretores, representantes e prepostos da Precisa. A CPI ainda quebrou o sigilo fiscal e bancário de Maximiano.
Os dados da quebra do principal telefone celular de Medrades, que registram apenas a ocorrência das chamadas, e não o conteúdo, ajudam a mapear como ela atuou –e como áreas estratégicas do ministério atuaram– para emplacar um contrato de R$ 1,61 bilhão.
A Precisa diz ter feito três reuniões com o Ministério da Saúde em novembro do ano passado. As duas primeiras teriam sido exclusivamente para mostrar a carta de representação da Bharat Biotech e apresentar dados iniciais técnicos da vacina, com participação de representantes da Secretaria de Vigilância em Saúde e do PNI (Programa Nacional de Imunizações).
A reunião do dia 20 de novembro foi a primeira em que se discutiu a possibilidade de compra, com a participação do então secretário-executivo, o coronel do Exército Elcio Franco Filho.
O relatório da quebra de sigilo registra uma ligação do celular de Medrades ao número fixo atribuído ao DLOG (Departamento de Logística em Saúde) em 4 de novembro. Isso se deu 16 dias antes da reunião formal para tratar da possibilidade de compra. A ata que registra a reunião aponta que o encontro ocorreu em 20 de novembro.
O DLOG era comandado por Roberto Ferreira Dias, um nome do centrão no ministério, bancado, entre outros apoios políticos, pelo líder do governo Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR).
Dias foi demitido do cargo em 29 de junho, após a Folha revelar acusação de cobrança de propina por parte do diretor. A denúncia foi feita por um PM vendedor de vacinas inexistentes.
Em depoimento à CPI da Covid, a diretora da Precisa Medicamentos afirmou que só teve contato com Dias em maio de 2021.
O relatório da quebra de sigilo telefônico registra ainda quatro chamadas ao número fixo do PNI, em 12 e 13 de novembro, e duas ao gabinete da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, no mesmo dia 12.
O PNI era comandado por Francieli Fantinato, que chegou a ser colocada numa lista de investigados pela CPI. O nome foi retirado posteriormente, diante da falta de evidências de irregularidades de Fantinato à frente do PNI.
Fantinato participou da reunião técnica feita em 20 de novembro para tratar da aquisição da Covaxin. Nessa reunião, com representantes da Precisa Medicamentos –Medrades e Maximiano entre eles– e da Bharat Biotech, foi feita uma proposta de US$ 10 por dose, conforme o memorando do encontro. O contrato foi assinado em 25 de fevereiro com preço estabelecido de US$ 15.
Três dias após a reunião, houve quatro chamadas ao gabinete de Elcio Franco. Ele era braço direito e número dois do então ministro, o general da ativa Eduardo Pazuello. O coronel decidiu concentrar em suas mãos os processos de negociação e de compra das vacinas contra Covid-19.
Em 18 de janeiro, foi a vez de o gabinete do secretário-executivo fazer chamadas ao celular da diretora da Precisa. Há três registros no relatório da quebra de sigilo telefônico recebido pela CPI da Covid.
As ligações teriam se dado por volta das 21h. Às 22h59 do mesmo dia, Franco assinou um ofício em que reiterava “o grande interesse deste Ministério da Saúde em dar continuidade aos diálogos proveitosos com a Bharat Biotech”. O ofício foi enviado a Maximiano e ao diretor-executivo da Bharat Biotech, Krishna Mohan.
Em fevereiro, houve cinco chamadas do DLOG ao celular de Medrades, conforme o relatório em poder da CPI. Duas se deram em 9 de fevereiro. No dia 11, o coronel Franco reiterou a intenção de compra de 20 milhões de doses.
Os outros três registros de chamadas ocorreram em 25 de fevereiro, dia da assinatura do contrato. Roberto Dias assinou pelo Ministério da Saúde. Medrades assinou pela Precisa e pela Bharat Biotech.
O setor de importação da pasta ligou 11 vezes ao celular da diretora da Precisa, em 24 de março e 9 de abril, conforme o relatório da quebra de sigilo telefônico. Medrades ligou três vezes ao setor, em 26 de março e 9 de abril.
Naquele momento, a Precisa já havia tentado, por duas vezes, viabilizar um pagamento antecipado de US$ 45 milhões por um primeiro lote de doses da vacina, com emissão de faturas internacionais que contrariavam cláusulas contratuais. O chefe do setor de importação da Saúde, Luis Ricardo Miranda, denunciou a ofensiva e, em depoimento, apontou pressão atípica para liberação da vacina.
No curso das tratativas com o Ministério da Saúde, Medrades trocou dezenas de ligações com o advogado Túlio Belchior Mano da Silveira, outro representante da Precisa no negócio.
Há ainda registros de ligações para telefones fixos da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
O contrato de R$ 1,61 bilhão está suspenso, por decisão da Corregedoria-Geral da União, que funciona no âmbito da CGU (Controladoria-Geral da União). A parceria, cujas suspeitas de crimes são investigadas ainda por CGU, PF, MPF (Ministério Público Federal) e TCU (Tribunal de Contas da União), deve ser cancelada de vez pelo Ministério da Saúde.
A Bharat Biotech rescindiu a parceria que mantinha com a Precisa, o que levou a Anvisa a cancelar estudo clínico e suspender autorização de importação da vacina indiana.
O coronel Elcio Franco tem, hoje, cargo de confiança na Casa Civil da Presidência. O Ministério da Saúde, a Secretaria de Comunicação da Presidência e a Precisa Medicamentos foram procurados no início da tarde desta terça-feira (27), mas não responderam aos questionamentos.
Vinicius Sassine, Julia Chaib e Renato Machado/Folhapresshttps://politicalivre.com.br/