por Cláudia Cardozo
O Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, declarou inconstitucional o foro privilegiado dado pela Constituição da Bahia a membros do Conselho da Justiça Militar, inclusive os inativos, e a membros da Defensoria Pública. A previsão estava contida no artigo 123.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi proposta pela Procuradoria Geral da República (PGR). O relator foi o ministro Edson Fachin. O julgamento ocorreu em sessões virtuais de 11 e 18 de dezembro de 2020, e afeta mais os membros da Defensoria, pois os do Conselho da Justiça Militar foram transformados em juízes militares com a Emenda Constitucional (EC) 45/04.
De acordo com a PGR, o trecho foi acrescido à Constituição da Bahia através da EC 11/2005. O texto estabelecia como competência do Tribunal de Justiça “processar e julgar, originariamente: a) nos crimes comuns, o vice-governador, secretários de Estado, deputados estaduais, membros do Conselho da Justiça Militar, auditor Militar, inclusive os inativos, procurador-geral do Estado, juízes de direito, membros do Ministério Público, membros da Defensoria Pública e prefeitos”.
Para a PGR, o texto viola a Constituição Federal de 1989. Sustenta que a autonomia organizativa dos Estados-membros é relativizada por limites constitucionalmente previstos, sejam eles implícitos ou não, cuja observância é sempre obrigatória. A ADI aponta que o rol de autoridades federais contempladas com foro por prerrogativa de função configura norma de reprodução obrigatória e que, por isso, “uma vez que a Constituição da República não prevê prerrogativa de foro aos integrantes da Defensoria Pública da União ou aos oficiais da Polícia Militar, os Estados federados também não podem fazê-lo”. Segundo a Procuradoria Geral da República, o Estado da Bahia inovou no direito constitucional estadual ao conceder o foro privilegiado para tais funções.
O autor da ADI ainda lembra a decisão do STF de que não há foro por prerrogativa de função para defensores públicos, procuradores de Estado e procuradores da Assembleia Legislativa. Destaca que a terminologia “auditores militares” foi alterada pela EC 45/04 e hoje são chamados de “juízes de Direito do Juízo Militar”, os quais, como magistrados, fazem jus ao foro especial até a aposentadoria, circunstância que subtrai a prerrogativa do foro por prerrogativa de função, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Sustenta haver violação aos princípios da isonomia e do juiz natural, na medida em que se cria um tratamento desigual entre servidores públicos e militares incumbidos das mesmas funções e se permite o redesenho de regras de competência absoluta por constituições estaduais. Por tais razões, pediu ao Supremo para declarar a inconstitucionalidade do trecho da Constituição da Bahia.
A Assembleia Legislativa da Bahia afirmou que a Constituição Federal não limita o direito ao foro por prerrogativa de função às autoridades nela elencadas. Sustenta que “não há que se falar em norma de reprodução obrigatória nem tampouco em exercício de competência legislativa privativa da União”, tendo em vista que a Constituição Estadual trata de matéria eminentemente política. Diz que a Defensoria cresceu muito nos últimos anos e que o tratamento jurídico dado a ela demonstra a necessidade do foro privilegiado para garantir tratamento igual aos dos magistrados e demais titulares de cargos de funções essenciais à Justiça.
O governo da Bahia informou que as atividades desempenhadas pelas autoridades elencadas no dispositivo estadual justificam a concessão de foro especial e que está dentro da autonomia conferida aos Estados pela Constituição Federal para legislar. Argumentou que não houve usurpação da competência da União para editar a norma. Também declarou que não houve ofensa à isonomia das carreiras, visto que as categorias apontadas “desempenham funções dotadas de peculiaridades que justificam o foro diferenciado que lhes foi atribuído”. Já a Advocacia Geral da União (AGU) se manifestou pela inconstitucionalidade do artigo da Constituição baiana.
O ministro-relator afirma que a discussão sobre a possibilidade de extensão do foro por prerrogativa de função pelos Estados não é nova no STF e lembrou julgados desta natureza. Fachin lembra que nos julgamentos foi evidenciado a interpretação do alcance da regra de prerrogativa de foro, que “deve ser feita à luz de uma legítima limitação do direito ao duplo grau de jurisdição, a qual só pode constar de modo expresso da própria Constituição da República, sendo certo que, em hipótese alguma, poderia decorrer de interpretação do legislador ou mesmo do constituinte derivado”.
De acordo com o relator, os Estados só podem “conferir foro por prerrogativa de função para autoridades cujos similares na esfera federal também o detenham, em respeito ao princípio da simetria”. Sobre o foro privilegiado para inativos, Fachin destacou um julgado do STF, relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski, asseverando que, ao aposentar, o processamento do magistrado é transferido para o 1º Grau de Justiça. O STF já definiu que o foro privilegiado visa proteger o cargo e não a pessoa detentora do cargo. A decisão foi unânime, entretanto, o ministro Alexandre de Moraes propôs modulação para o caso, pois a norma impugnada estava em vigor há 15 anos.
RISCO PARA DEFENSORES
O presidente da Associação dos Defensores Públicos da Bahia (Adep-BA), Igor Raphael, afirma que, para a entidade, o trecho questionado é constitucional. “Nós entendemos que o texto segue os mesmos parâmetros da Constituição Federal”, afirma. A Adep atuou na ADI na qualidade de amicus curiae (amigos da Corte), apresentando pareceres.
“Nós lamentamos a decisão do Supremo, pois representa um grave risco para a atuação de defensores públicos e para a independência funcional”, informa o presidente da Adep-BA. Ele lembra que, até 2018, o entendimento do Supremo era da constitucionalidade do foro privilegiado para os defensores públicos. “Desde então, outras constituições estaduais vêm sofrendo com esse entendimento”, sinaliza. O STF já declarou, por exemplo, que delegados não têm direito ao foro por prerrogativa de função.
Igor Raphael destaca que a Defensoria representa interesses da população mais vulnerável da sociedade contra grandes companhias, empreendimentos, e até mesmo políticos e o Poder Público. “Essa prerrogativa garante a independência do defensor. Nossa prerrogativa existe pelos nossos assistidos, não é um privilégio. Essa declaração de inconstitucionalidade retira o equilíbrio do sistema, pois juízes e promotores têm direito a ela. Além disso, ela nos preserva do risco da influência política local”, explica.
Apesar de acontecer com menor frequência, para o representante dos defensores, há chances dos membros da Defensoria se tornarem alvos de ações por suas atuações, principalmente nas comarcas do interior. Também avalia que a declaração do STF viola a isonomia entre as carreiras da Defensoria, Magistratura e Ministério Público. “Do ponto de vista político, essa decisão fez com que a gente descesse um degrau da escada, mostrando um enfraquecimento da Defensoria”, avalia.
O restabelecimento do foro por prerrogativa de função de membros da Defensoria pode ocorrer por duas vias, segundo Igor Rapahel: uma mudança de entendimento do Supremo, mas que não deve ocorrer em um curto espaço de tempo; e por Emenda Constitucional. A Adep vai avaliar quais medidas serão adotadas para resgatar o foro privilegiado para a classe. O presidente da entidade entende que tal medida deve ser adotada com urgência, mas analisando o melhor momento para fazer uma articulação política, diante de outras pautas que a entidade vem encampando a nível estadual e federal.
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