Publicado em 24 de março de 2021 por Tribuna da Internet
Malu Gaspar
O Globo
O encontro do presidente Jair Bolsonaro com os chefes do Legislativo e do Judiciário e um grupo de governadores, marcado para esta manhã, terá duas facetas distintas. Para o público externo, tudo foi programado para ser um ato de cooperação entre os poderes no combate à Covid-19, incluindo a pose para a foto, com o presidente de máscara, demonstrando união.
A portas fechadas, porém, a conversa será de cobrança. O alvo dessa vez não é só o ministro da Saúde, mas o chanceler Ernesto Araújo. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o da Câmara, Arthur Lira, vão pressionar Bolsonaro pela mudança do comando de sua política externa para facilitar a aquisição de vacinas da China e da Índia.
SEM DIÁLOGO – Eles consideram que a presença de Araújo à frente do Itamaraty prejudica as conversas com esses países e é um obstáculo na negociação de compra de doses e princípio ativo para a fabricação no Brasil.
Há também uma preocupação com os Estados Unidos, que tem enviado sinais de que deseja mudanças na política ambiental brasileira em troca da oferta de imunizantes ao país.
Nas últimas semanas, Lira e Pacheco realizaram reuniões com o embaixador da China e outros representantes do governo chinês, tentando encontrar maneiras de comprar mais doses e agilizar o envio dos insumos para a produção da vacina da Fiocruz, que também veio da China.
POSTURA – Ouviram dos chineses que, com Araújo no Itamaraty, não tem conversa. Eles consideram inaceitável a postura que o ministro vem adotando em relação a seu país desde o início do mandato de Bolsonaro.
Em janeiro, os chineses já haviam pressionado o Planalto pela demissão de Araújo, que nunca se retratou dos ataques feitos ao país desde o início da pandemia. Tudo começou quando o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, escreveu numa rede social que a “culpa” pela pandemia do coronavírus era da China. Em resposta, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wammin, exigiu retratação.
Araújo saiu em defesa de Eduardo Bolsonaro, dizendo ser “inaceitável que o embaixador da China endosse ou compartilhe postagem ofensiva ao chefe de Estado do Brasil e aos seus eleitores”. Exigiu, também, uma retratação do embaixador chinês. Desde então, a tensão só aumentou.
DESDÉM – O próprio presidente da República desdenhou da “vacina chinesa” do Doria, em referência ao acordo do instituto Butantan com a chinesa Sinovac para a produção da Coronavac. E tanto o chanceler como o filho do presidente se posicionaram contra qualquer acordo com a China na licitação para a instalação da tecnologia 5G no Brasil.
Desde então, outros ministros passaram a intermediar a relação do governo com a China. Ainda assim, os reflexos se fizeram sentir. Em janeiro, enquanto o Butantan recebia remessas do princípio ativo direto da China, a Fiocruz, ligada ao governo federal, enfrentou diversos entraves burocráticos para desembaraçar o envio de suas doses ao Brasil. Na ocasião, até mesmo o vice-presidente Hamilton Mourão chegou a declarar que Araújo teria de deixar o cargo. Mas Jair Bolsonaro rechaçou a ideia.
COBRANÇA – Nesta manhã, os chefes do parlamento voltarão à carga, convencidos de que precisam tirar Araújo da frente para acelerar a chegada das vacinas ao Brasil. A ideia de Arthur Lira era importar não só as doses da Sinovac, mas também da Sinopharm, mas as conversas sempre empacam no mesmo ponto.
Há dificuldades também com a Índia, que tem atrasado as entregas de doses à Fiocruz em razão de entraves burocráticos e políticos. A Índia tem motivos para má vontade com o Brasil, que não apoiou a proposta do país e da África do Sul de suspender as patentes de vacinas enquanto durar a pandemia.
Ontem, a presidente da fundação, Nísia Trindade, disse ao presidente do Senado que vai entregar 12 milhões de doses a menos do que o previsto em abril, porque o princípio ativo para a fabricação das vacinas não chegou a tempo da Índia. Isso reduziu a previsão de entrega de vacinas de 30 milhões para 18 milhões de doses em abril.
CONDIÇÃO – Em jantar com empresários, nesta segunda-feira, Pacheco e Lira ouviram que empresas americanas iriam condicionar a venda de novas doses de vacina à mudança na política ambiental do Brasil.
Tudo isso será exposto na conversa com o presidente. Mas ela não será a única forma de os parlamentares demonstrarem seu incômodo com a atuação de Araújo. O chanceler tem uma audiência à tarde no Senado para prestar esclarecimentos sobre os acordos para aquisição de vacinas. À sua espera, perguntas duras e mais pressão.