.em 4 mar, 2021 9:34
MAURICIO GENTIL
Na eleição presidencial de 2018, diversos eleitores que no segundo turno assumiram o voto em Jair Bolsonaro defendiam sua escolha sob o argumento de que as posturas antissistema e claramente antidemocráticas daquele candidato em toda a sua trajetória política e durante a campanha seriam mera bravata e de que as instituições brasileiras estariam suficientemente maduras e aptas para conter os arroubos autoritários e as ameaças de rompimento da democracia formal.
Contudo, a trajetória do Governo Jair Bolsonaro e sua atuação política desde o início de 2019 demonstraram que não se tratava de mera retórica, mas sim de claro projeto com evidentes testes de possibilidades e viabilidades (que se intensificaram ao longo de todo o ano de 2020, especialmente durante o primeiro semestre). Ao mesmo tempo, destaque-se a atuação vacilante das instituições em defesa da democracia e do Estado de Direito, com clara omissão do Congresso Nacional e da Procuradoria-Geral da República, ressalvando-se a atuação do Supremo Tribunal Federal na contenção de abusos, ainda que com questionáveis procedimentos em alguns casos.
Esse cenário ganha contornos dramáticos quando a situação da pandemia global do coronavírus alcança no Brasil estágio de absoluto descontrole e de colapso nacional do sistema de saúde, que, segundo todos os prognósticos, revelará um março trágico em óbitos, a maior tragédia sanitária de nossa história.
A evidência de que o Governo Federal, a partir do Presidente da República, adotou como política de governo disseminar o vírus rapidamente apostando em uma imunidade coletiva (ainda que resultando em mortes consideradas aceitáveis e inevitáveis, para não “parar” a economia) resulta não apenas da percepção do seu boicote aberto às medidas de prevenção (a exemplo do estímulo pessoalmente conduzido e reiterado para aglomerações e o péssimo exemplo quanto ao não uso da máscara), mas também da deliberada instrumentalização jurídico-normativa voltada ao alcance desse claro objetivo, como comprovado em boletim denominado “Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à COVID-19 no Brasil”, de responsabilidade do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, que realizam essa pesquisa desde março de 2020: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo Brasileiro sob a liderança da Presidência da República” (confira em https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html?utm_medium=Social&utm_source=Twitter&ssm=TW_BR_CM#Echobox=161125727).
A péssima gestão governamental da crise é tão evidente no inaceitável atraso na campanha nacional de vacinação decorrente de claras opções governamentais em não comprar, em tempo, vacinas que estavam em desenvolvimento e fases de testes mas já se revelavam promissoras quanto na resistência inicial à criação do auxílio emergencial no ano passado e agora na sua não renovação, para citar apenas dois elementos dessa hecatombe que nos abate.
E a inevitabilidade de “lockdown” nacional agora (como medida temporária, que se revelou eficaz para conter emergencialmente e preventivamente o avanço do vírus em diversos países), para tentar fazer com que o colapso trágico do sistema nacional de saúde dure menos tempo do que pode durar, esbarra na extrema dificuldade de sobrevivência de tantas pessoas, trabalhadores e trabalhadoras, incluindo autônomos, ainda mais ante a falta de amparo governamental com o auxílio emergencial e outras medidas de compensação ao fechamento do comércio e atividades em geral.
Isso somado ao fato de que sem funcionamento do comércio e serviços as receitas dos Estados caem sensivelmente, comprometendo a própria manutenção e funcionamento da máquina administrativa de prestação e execução de serviços públicos, incluindo os serviços públicos essenciais, além de comprometer pagamento de salários dos servidores.
Esse tipo de atuação – necessária e indispensável – de enfrentamento ao COVID-19 ainda mais no atual estágio de crise aguda somente pode ter chance de êxito se contar com a coordenada e articulada atuação do Estado e da sociedade, cada qual assumindo seus ônus e suas responsabilidades, presente o interesse coletivo e mesmo a sua prevalência sobre os interesses individuais. E essa atuação estatal demanda a realização de investimentos públicos e ajuste de políticas monetárias, ante a necessidade de emissão de moeda para esse amparo, com reflexos de política macroeconômica. As medidas de amparo social e econômico, aí incluídas as políticas monetárias, devem ser adotadas pela União, tratando-se de competência legislativa privativa e administrativa sua (art. 21, incisos VII, VII e IX, 22, incisos VI e VII da Constituição), políticas para as quais existirá necessária atuação do Senado Federal e consequente interlocução dos Estados e do Distrito Federal, por seus representantes (Senadores) (art. 52, incisos V, VI, VII e VIII), sem prejuízo de adoção, por Estados e Municípios, em seus âmbitos, de medidas de incentivos fiscais à atividade econômica de amparo e assistência social.
Como a União – pelo Presidente da República e Ministério da Saúde – se omite, tergiversa, boicota, alardeia que a pandemia é resultado de promoção de pânico pela imprensa, os Governadores de Estado e Secretários Estaduais de Saúde, inclusive aqueles que apoiam politicamente o Governo Bolsonaro, começaram a se movimentar, emitindo nota contestando ações do Governo Federal e clamando para que a União cumpra o seu dever constitucional de coordenar nacionalmente as políticas emergenciais de enfrentamento da crise.
Já dissemos mais de uma vez aqui mesmo: sob a liderança de Jair Bolsonaro, improvável será superar toda a crise decorrente do coronavírus e todas as evidentes ameaças de ruptura institucional democrática (“Mudanças na conjuntura do ‘Fora Bolsonaro’?”). Somente um despertar definitivo das instituições pode atuar emergencialmente nesse momento.
Dissemos em 28/01/2021: se diante dos episódios como a morosidade e inépcia do Governo Federal no que se refere à política nacional de vacinação e a tragédia que o colapso da rede de saúde em Manaus revelou esse despertar não ocorresse, seria cada vez mais difícil imaginar que viesse a ocorrer algum dia.
Parece mesmo que é agora ou nunca: se diante do colapso nacional do sistema de saúde e da já anunciada maior tragédia sanitária de nossa história as instituições não despertarem definitivamente de sua inércia e não adotarem atitudes concretas e objetivas para conter o negacionismo, o boicote assumido e a inépcia do Governo Bolsonaro e para superar a crise dramática, será improvável que venha a acontecer algum dia. E aí somente restará à cidadania o caminho da luta contínua e incessante, tão difícil em tempos de aguda crise econômica e social e de restrições de mobilizações por conta exatamente da pandemia quanto necessária como modo de vida e mesmo razão de viver.