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terça-feira, junho 09, 2020

A paralisia coletiva diante da força do obscurantismo na manipulação da ciência


Charge do Duke (dukechargista.com,br)
Natalia PasternakO Globo
Distorcer a ciência e tentar submetê-la a ideais políticos não é
novidade em governos autoritários. Quando a verdade, escancarada por dados científicos, fere as aspirações políticas e ideológicas de um ditador, o mais fácil é criar uma ciência paralela e ocultar a informação correta. Meios para tanto vão desde censurar os dados até perseguir e matar cientistas e críticos.
Quando as autoridades federais retiravam do ar o portal com os dados atualizados da pandemia, ao mesmo tempo em que Carlos Wizard, então convidado para assumir uma secretaria do Ministério da Saúde, acusava prefeitos e governadores de fraude, é hora de acender todos os alertas de que a democracia está a caminho de se tornar a próxima vítima da
Covid-19 no Brasil.
EXEMPLO HISTÓRICO – Por ironia, um paralelo próximo do que acontece aqui vem da História do Comunismo. No início do século XX, na Rússia, a agricultura era um grande desafio. Os invernos intensos traziam períodos de escassez e pediam novas sementes, que pudessem sobreviver ao frio.
Naquela época, a genética ganhava força no mundo, e um jovem geneticista chamado Vavilov, após rodar o mundo, retornou ao seu país com um plano de melhoramento genético das plantas, baseado em cruzamentos e seleção artificial.
Stálin, no entanto, queria soluções rápidas, e considerou que os dez anos propostos por Vavilov não atendiam às necessidades da URSS. Ele tinha ideias mais atraentes. Preferiu apostar em Lysenko, um horticultor que dizia que, se as sementes fossem guardadas no frio, “aprenderiam” a ser resistentes. A política de agricultura na URSS foi, então, baseada nessa fantasia.
SOLUÇÕES “SIMPLES” – Profetas anticientíficos, com soluções simples, rápidas — e erradas —, costumam encantar líderes autoritários, que veem a realidade como extensão de suas vaidades.
Lysenko foi extremamente criticado pelos cientistas de verdade, mas sua solução para isso foi simples. Com apoio do governo, Lysenko baniu, perseguiu e matou os discordantes. A ideia de “treinar” sementes para o frio, obviamente, nunca deu certo.
Vavilov, o homem que tentou salvar a URSS da fome, foi preso em um campo de trabalhos forçados, e morreu, ironicamente, de fome. A biologia e a agricultura da Rússia sofreram um retrocesso de décadas.
CIÊNCIA SOB CONTROLE – Segundo Martin Gardner, autor de diversos livros sobre ciência ruim e pseudociência, “o mais assustador do lisenkoísmo é o fato de que uma grande cultura colocou, de forma inequívoca, a verdade científica subordinada ao controle político”.
O Brasil talvez não se qualifique como “grande cultura”, mas vai pelo mesmo caminho. A ciência está sendo distorcida para acomodar um discurso político. Dados reais estão sendo ocultados e questionados sem base. Tudo isso, durante uma das
maiores crises sanitárias da História.
A tediosa reação da comunidade científica, quando há, são notas de repúdio e “marchas” virtuais. Dado o mergulho do governo no
lisenkoísmo, diria que essas atitudes não são baseadas na melhor
evidência de eficácia — embora pareçam seguras. Não parece conveniente subestimar o poder do obscurantismo de dar cabo da democracia e da ciência no Brasil.
Artigo enviado por Edinei Freitas. A dra. Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e autora do livro “Ciência no Cotidiano” (ed. Contexto)

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