O negacionismo da ausência ou inadequação da resposta
O negacionismo explícito da mudança climática foi fomentado por muitos anos pela indústria do combustível fóssil, confundindo as pessoas sobre a base científica do aquecimento global e suas consequências, de modo a garantir a perpetuação de atividades econômicas muito lucrativas.
Esse negacionismo explícito ainda se faz presente e consegue ser barulhento, especialmente quando se junta a toda uma ala conspiracionista que beira ao terraplanismo e outras teorias absurdas que circulam abertamente – muitas vezes impulsionadas na extrema-direita com o intuito de alimentar ciclos de desconfiança e manipulação.
Porém, menos pessoas sabem que esse tipo de negacionismo ronda, embora marginalmente, alguns espaços de esquerda. Mesmo em 2024, ainda se ouvem e leem afirmações de que a mudança climática é uma falácia de imperialistas interessados em atrapalhar o desenvolvimento de países periféricos, como o Brasil.
Há também versões que tratam qualquer pauta ambiental como entrave para tal desenvolvimento e acusam ambientalistas de agirem contra os interesses de “soberania” nacional – pautando uma versão dessa soberania que por tanto depender de uma ideia de exploração infinita de recursos, não passa de uma “soberania com prazo de validade”, afinal, num mundo em chamas, uma hora se tornará evidente que a água vale bem mais que o petróleo.
Dentro desse espaço se nutrem desdobramentos de política pública onde o econômico é independente do socio-ecológico e também superior. Daí a tranquilidade com que governadores cortam orçamento da Defesa Civil e parlamentares se recusam a destinar emendas para a prevenção de desastres.
As enchentes no verão do Rio de Janeiro evidenciaram que mesmo onde já existem planos de adaptação climática, não são levados a cabo.
O negacionismo se expressa na negligência, na inferiorização e no desdém, mas não é ocasional. Está atrelado a um projeto de subdesenvolvimento baseado em combustíveis fósseis, no agronegócio, na mineração de comódites, na especulação financeira e endividamento, e nos mega-projetos que enriquecem construtoras e demais corporações nacionais e internacionais enquanto geram zonas de sacrifício por todas as partes.
Essas zonas de sacrifício determinam quais vidas valem mais ou menos, onde o prometido “desenvolvimento” realmente vai chegar, e quem dependerá da caridade e do voluntariado no dia da calamidade geral.
É por isso que a direita treme quando se usa o conceito de “racismo ambiental”, pois ele ajuda a dar a cara ao molde estrutural da exclusão e subjugação colonial que ainda organiza recursos e serviços no Brasil.
O negacionismo da resposta insuficiente e isolada
Diante desse contexto, é revigorante testemunhar e saber que há no Brasil um governo federal disposto a marcar presença, tomar decisões difíceis e destinar medidas e recursos emergenciais quando tantas pessoas, animais e ambientes são atingidos pelos efeitos das mudanças climáticas.
Melhor ainda é entender que há uma preocupação em interligar propostas de desenvolvimento econômico no país com responsabilidade ambiental e valorização dos povos que cuidam da natureza.
Porém, essa mesma responsabilidade ecológica exige contextualizarmos o que está em jogo e a grande armadilha apresentada ao apostar em conciliar ações altamente contraditórias. Para isso, é preciso falar do grande problema do desenvolvimento dependente de petróleo e da lógica de governar com o agronegócio.
Obviamente, há de situarmos o desafio da democracia liberal representativa brasileira. Nos moldes do debate de Florestan Fernandes, sabemos que se trata de uma democracia limitada presa aos interesses da burguesia nacional que prefere o subdesenvolvimento do país que os avanços socioecológicos e econômicos que poderíamos ter com uma verdadeira reforma agrária popular e a demarcação urgente de territórios indígenas.
Nessa estrutura de democracia limitada, mesmo um governo mais à esquerda se encontra refém de parlamentares que representam todos os tipos de atraso. Daí a importância da politização e mobilização popular na tarefa de cobrar e pressionar, pois empodera o executivo e seus aliados no legislativo nas negociações e projetos apresentados. É essa leitura que informa os próximos parágrafos.
É necessário mobilizar massivamente por justiça climática no Brasil. A consciência dos efeitos da crise ecológica se alastra pelo país a cada enchente, seca, deslizamento, rompimento de barragem, incêndio, onda de calor, tempestade, entre outros.
Os negacionistas clássicos até tentam confundir, mas a classe trabalhadora tem sentido na pele a intensidade e frequência dos desastres. Isso deveria abrir margem não somente para uma discussão ampla sobre arrecadação e uso de recursos públicos para implementar planos integrados de adaptação climática nos municípios e estados, como sobre o que está em jogo em termos de perdas e danos.
Não é suficiente denunciarmos a dívida histórica dos países ricos e a injustiça climática que promovem, se isso serve para atrasar uma transição socioecológica justa no nosso país. O Brasil, justamente por seu histórico colonial e do peso do agronegócio, está entre os maiores emissores históricos de gases de efeito estufa.
Se emitimos bem menos historicamente através de combustíveis fósseis, isso não deveria servir para alimentar uma ilusão de que temos “crédito no banco para emissões fósseis”. Pelo contrário, demonstra quão frágil e temporária é uma política de desenvolvimento que pretende perfurar mais poços de petróleo como oportunidade para financiar serviços e bens públicos e até mesmo projetos de transição.
É preciso refletir sobre o suposto desenvolvimento que acompanha a exploração de combustíveis fósseis e o crescimento econômico do agronegócio ao lado do des-desenvolvimento causado pela calamidade climática, a violência cometida contra povos indígenas e trabalhadores do campo, e o sistema de eco-apartheid que se anuncia todas as vezes que a população pobre é desalojada enquanto as classes mais altas podem se acomodar em hotéis, casas de veraneio e outras cidades.
Enquanto os setores que geram emissões seguem lucrando, os gastos são externalizados para o público, seja através do estado ou para a sociedade civil que tira do bolso para comprar mantimentos para atingidos.
A tendência é a escassez de recursos públicos quanto piores os desastres
Não seria mais válido um planejamento que centralizasse a diminuição da dependência econômica da exploração do petróleo?
Um plano de redução de dependência de combustíveis fósseis que, em coordenação com outras áreas, identificasse potenciais investimentos para a geração de renda e empregos e determinasse áreas de exclusão de novas perfurações de petróleo. Tal plano pode vir acompanhado de propostas já conhecidas para que os países ricos compensem os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos por deixarem o petróleo intocado.
Transversalidade na aplicação de políticas de adaptação e mitigação. Um excelente exemplo se dá no setor de transporte urbano, onde uma política tarifa zero atrelada à diminuição da dependência da população de carros individuais pode significar redução de emissões, cidades mais adaptadas às chuvas, maior qualidade de vida e menos mortes no trânsito.
Coordenação regional e alianças com países emergentes e subdesenvolvidos para garantir que o uso de recursos primários para projetos de transição seja alocado de acordo com as necessidades locais. Pouco adianta, por exemplo, garantir royalties de mineração para minérios estratégicos para o desenvolvimento de renováveis se os produtos e tecnologias derivados serão produzidos no exterior e subsequentemente importados a preços muito mais caros.
Adequação a princípios de justiça climática também nos projetos de transição, para que avanços em energia renovável total, por exemplo, não venham ao custo de comunidades locais.
O Brasil está muito melhor posicionado hoje para liderar o enfrentamento contra as mudanças climáticas que no governo anterior e tem sinalizado nessa direção através de alocações orçamentárias e programas de desenvolvimento tecnicamente mais “verdes”.
Porém, sem uma política de transição que realmente integre a necessidade de adaptação com mudanças radicais nas metas de mitigação climática, os custos de resposta humanitária e ambiental ficarão cada vez mais caros.
A tendência é a escassez de recursos públicos quanto piores os desastres, de modo que mesmo governos de esquerda atentos à questão climática se encontrarão em graves dificuldades para responder adequadamente.
Isso levaria à exaustão social e maior desamparo representado na necessidade do povo de pedir dinheiro na internet para garantir o básico de socorro.
A máxima de “prevenir é melhor que remediar” vale para cada aspecto da crise ecológica e trabalhar, com mobilização popular, para superar a dependência do petróleo e do agro abrirá caminhos mais frutíferos, mais baratos e onde a ajuda humanitária seja presente nos momentos de exceção e não como suporte permanente numa catástrofe contínua.